Janeiro I

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Está calor. Não aguento fazer coisa alguma, me levantei da cama hoje só por obrigação. Já são quase seis horas da tarde e só consigo imaginar que o termômetro já ultrapassou os quarenta graus, e que infelizmente o dia ainda não acabou.

Gostaria muito que ele tivesse acabado pelo menos uma meia hora atrás, antes do Carlos ter a brilhante ideia de passar por aqui e informar aos meus pais aonde estava indo.

– E aí, tia Neide! – ele chegou de carro, um sedan negro e lustroso e que não era nem o pai lhe dando carona, nem um taxi. Um motorista desses de aplicativos, talvez.

Nãoera a primeira coisa que se notava, porém, porque Carlos estava usando um terno. Mal arrumado e com jeito de malandro, sem a gravata ainda, mas estava. E isso chamou atenção, claro. Sapatos pontudos e lustrosos, a barba super ralinha tinha sido aparada para deixar a impressão de que era um cavanhaque. Costeletas longas (aposto que pintadas com um lápis de olho) para dar o ar de que ele tinha saído de um filme da década de 20... Ou que tinha mais de vinte anos. Ou as duas coisas.

Pra mim, nada disso funcionava bem, mas minha mãe o elogiou, disse que estava bonito, elegante. Meu pai até se levantou do sofá e bateu a mão no seu ombro, aprovando a vestimenta.

– Me ajuda com a gravata aqui, tio?

Carlos não se dirigiu a mim hora alguma, apesar de ter me visto sentado à mesa da cozinha, bebericando um suco qualquer e mentalmente amaldiçoando o destino por ter me feito sentir sede justamente naquele momento. Eu podia ter ficado no meu quarto e me poupado da visão. E da conversa que se seguiu:

– Vai pra alguma festona, né? – meu pai riu e o Carlos lançou a isca, como quem não quer nada:

– É a formatura do pessoal do terceiro ano lá do colégio, amigo nosso... Saca? Do time de futebol...

Meu pai levantou as sobrancelhas até que elas saltassem da testa e minha mãe me olhou enviesado, o pano de prato secando um utensílio qualquer. Fingi que não vi, mas não funcionou muito bem.

– Ué, seus amigos estão se formando hoje? – meu pai questionou, Carlos elaborou o raciocínio dizendo que a festa era naquela noite, no Iate Clube, só para convidados. O "dono da casa" então se virou pra mim com certo desprezo, como sempre, e mandou: – E por que você não está arrumado?

Carlos fez um barulho com a boca que indicava claramente que tinha conseguido o que queria. Demorei algum tempo para responder, pensando se deveria ser irônico ou só abaixar a cabeça mesmo, como sempre, e resolvi que a última opção era a menos penosa. Eu sabia, porém,  que tudo tendia a se transformar numa tempestade, de qualquer forma.

– Porque não fui convidado. – bebi o resto do suco. – A festa é só para convidados.

Não sei precisar o que aconteceu em seguida, porque as atenções se voltaram para meu primo novamente. Subi as escadas e me esgueirei para dentro do meu quarto, tentando ignorar o barulho no andar de baixo. Meu primo se despediu, entrou em outro carro qualquer e meus pais estão milagrosamente contribuindo para que o dia volte à calmaria, mas sei que o momento não vai durar para sempre.

Até amanhã, no máximo, quando tivermos que almoçar com a família, e quando os comentários pós-festa do Carlos me atropelarão de novo.

Às vezes eu realmente gostaria que esse atropelamento fosse real, sabe? Que ele pegasse o carro - ou um caminhão, que faria o serviço melhor - e só passasse por cima de uma vez. Mas sei que ele gosta de torturar, sei que o mundo gosta de torturar.

E sei que não estou preparado para essa tortura, na maioria das vezes. Mesmo depois de anos, ainda não me sinto capaz de aguentá-la, infelizmente. Nem o lugar que deveria ser meu porto seguro me transmite qualquer proteção...

Enfim. Esteja avisado que pensamentos como esses me ocorrem o tempo todo. E essa não é uma história engraçada, muito menos feliz. Pelo menos não agora. Pelo menos não por enquanto... Mas eu espero que seja, um dia.

Afinal, sou eu, Daniel Henrique Chagas, um esperançoso fora da lei na minha própria vida.



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COMEÇAMOS OS TRABALHOS.

Por favor, fiquem, vai ter bolo! (umas lagriminhas também, mas a gente seca no final)

Aprendendo a Gostar de Você {Aprendendo III}Onde as histórias ganham vida. Descobre agora