Outubro I

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Na escola, Renan e eu ainda somos vistos como "amigos". Mariana não disse nada depois do sábado no shopping — não que eu achasse que ela fosse dizer, mas sei lá, não sou de confiar 100% nas pessoas. Ela tampouco mudou de comportamento com nenhum de nós dois, mas me confidenciou certo dia que não se importaria que eu contasse ao Renan sobre a paixonite dela.

— Já segui em frente, e eu mesma contaria se não fosse soar tão... idiota. — ela arrematou.

Sei que não devo, é o mesmo sentimento de quando eu contei pra ela sobre a sexualidade do Renan, mas não me contenho e acho uma oportunidade para colocar tudo na mesa pra ele ver, porém, superando todas as minhas paranoias e baixa autoestima. Ele parece tão chocado quanto eu.

—Finalmente o mistério dos Correios Elegantes é solucionado! — mas isso é a única coisa que comenta.

Não há espaço para qualquer pensamento do tipo "ele ficaria com ela se não fosse por mim?" porque estamos na sua casa na hora do almoço, sua mãe fez lasanha especialmente pra ele, e nós temos a privacidade de ficarmos juntos no seu quarto depois de comer.

Não há espaço pra Mariana, só pra mim.

E para o ENEM, que entra pelo Correios como um furacão nas nossas vidas. O cartão chega quando estamos deitados na sua cama, aproveitando a calmaria depois do almoço, e só de ver o dele me dá vontade de vomitar porque sei que o meu ou já deve ter chegado também, ou estar no processo.

Outubro chega com a expectativa de um feriado prolongado. Estamos precisando de uma folga, já que o fim do ano está tão próximo que me sinto anestesiado por ter passado tudo tão depressa, mas ao mesmo tempo tão devagar.... Essa contradição esquisita e perturbadora.

Isso também significa que os professores estão ensandecidos com a perspectiva de algum de seus alunos falhar no vestibular. Somos praticamente enterrados debaixo de simulados e trabalhos e matéria.

As aulas de educação física são oficialmente suspensas já na primeira semana do mês, apesar de ainda podermos ir para a horta do colégio. Não faz diferença pra mim, porque exercício físico é a última coisa que me preocupa no momento, mas sei que faz pro Renan, porque sua energia precisa ser descarregada em alguma coisa.

— Fiz matricula numa academia perto de casa — ele anuncia, do nada, apertando a barriga de modo nervoso. — Eu engordei mesmo, preciso fazer alguma coisa pra mexer esses músculos flácidos...

Tento conter um riso, mas solto mesmo assim e ele me dá uma cotovelada de brincadeira. Pra mim, continuamos os mesmos, mas sei que muita coisa mudou internamente. Externamente, apesar dele e do Joel ficarem zoando, não enxergo os quilos a mais, só os cabelos mais compridos e um sorriso que raramente deixa o rosto.

Na primeira quarta-feira do mês, a psicóloga me pede para falar da minha família em detalhes, contar sobre meus pais e o resto também. Helena diz que me deu bastante tempo para pensar no assunto e que gostaria que eu ficasse mais à vontade. Presumo então que essas sessões não vão terminar enquanto eu estiver na escola.

Como sempre, ela não insiste, só deixa o assunto no ar, mas é um tópico que me dá vontade de explodir. Respiro fundo, remoendo os últimos meses, anos, minha vida inteira, e solto:

— Odeio minha família — engulo as palavras e me corrijo: — Tirando minha mãe e minha avó.

Helena fica visivelmente pasma com minha fala, mas eu calculei bem o tempo: faltam exatos cinco minutos para terminarmos a sessão, o que não lhe dá tempo de me pedir para formular mais nada.

Ela me acompanha até a porta e me dá outra tarefa:

— Quero que escreva o que está sentindo. Tente. No começo vai parecer esquisito, mas pode ser uma maneira muito mais fácil de você conseguir dizer coisas... parecidas com as que disse hoje sem a obrigação de se expor. — seu olhar é de piedade, mas vejo uma mistura de companheirismo ali também. Não me incomoda o modo como ela me trata, afinal eu sou um de seus pacientes, querendo ou não. — Você pode escrever num blog na internet, ou num caderno mesmo, sempre que tiver tempo ou se sentir cheio demais. E, se não quiser me mostrar esses escritos, não vou insistir, está bem?

Aprendendo a Gostar de Você {Aprendendo III}Onde as histórias ganham vida. Descobre agora