É claro que a Natália não ia deixar aquilo passar.
Quando vejo todo mundo comentando o beijo, sei que foi obra sua a nova fofoca ter se espalhado tão rapidamente. Ela não disfarça; umas duas horas depois de termos voltado do almoço, quando estamos juntos perto do robô, ela chega pra mim e diz que perguntou para "algumas pessoas" se elas sabiam sobre eu e o Renan.
— Já que vocês fizeram aquilo no portão, não achei que fosse mais segredo, então...
— Não ligo, Natália — eu tiro sua falsa preocupação do caminho de uma vez. — Pode falar pra quem quiser, comentar com quem quiser. Não tenho nada a esconder.
E é verdade. Eu simplesmente não ligo mais.
Um pouco depois disso, os gêmeos são avistados no meio do público e, quando suas sobrancelhas se vincam no meio de uma conversa com a Isadora, já sei que vou ser questionado em algum momento se nos encontrarmos.
Não estou com paciência pra isso, então me isolo um pouco na quadra, debaixo das sombras do prédio principal da escola. Renan está em algum lugar com os parentes e me manda uma mensagem dizendo que a mãe também chegou, então ele tem que se dividir entre o pai e ela, que não conseguem ficar num mesmo ambiente juntos. Coitado.
Daniel Henrique: pelo menos eles vieram
(sábado, 15:48)
Eu digito a mensagem, mas detenho meu dedo de apertar o botão de enviar. Não quero soar dramático, nem que ele se preocupe comigo, então só mando uma carinha rindo e desejo boa sorte.
O ícone de um aplicativo pisca e vejo o nome do Sander na tela. Fico instantaneamente empolgado com sua mensagem de feliz aniversário. Está toda escrita em inglês e parece um pouco apressada, mas faz um tempo que não nos falamos, o que me deixa com saudades... Ele diz para responder assim que possível, para que possamos nos falar por vídeo, e estou prestes a fazer isso ali mesmo quando vejo um grupo se aproximando de mim na quadra.
Me sinto um pouco nervoso por motivo nenhum. Olho para os lados e percebo que estou sozinho ali. Minhas pernas tremem e noto que meu corpo reage da mesma maneira quando penso no meu primo, por exemplo.
Estou com medo. Mas por quê?
A trupe vem calada. Rafael, Gabriel, Caíque, Felipe, até o Gustavo! Os cinco se sentam ao meu redor na arquibancada, me cumprimentando brevemente. Ficamos todos em silêncio por alguns minutos que, confesso, me deixam tensos.
— Poxa, é teu aniversário, né, Dani? — Gabriel bate no meu ombro, me dando um susto enorme. Ele ri e me balança com o aperto. — Ficando velho igual a gente! Quantos são? Dezenove anos?
Balanço a cabeça em afirmativa. Os dois gêmeos assentem, comentando que somos do mesmo ano.
— Tu nem fala nada, né? Fica aí na surdinha! — Rafa brinca, os outros riem. — Nem pra contar que também tava namorando, hein?
Sabia.
Engulo seco e permaneço em silêncio.
Eles acham estranho a minha falta de reação e começam a brincar de me cutucar. Em algum momento entre as risadas e comentários sarcásticos, eu explodo e me levanto. Sei que devo estar vermelho como um pimentão bem maduro, inchado e visivelmente alterado, porque os olhos de todo mundo dobram de tamanho.
— Velho, foi só uma brincadeira, foi mal-
— Estou namorando mesmo, e daí? — eu corto o Rafael e a afirmação parece faze-los engolir as zoações seguintes.
— E daí que... nada. — Gabriel encolhe os ombros. — A gente só veio te dar parabéns, só isso. Se você não quis contar pra ninguém, é tua decisão e a gente não tem nada a ver com isso.
Não é uma fala que qualquer um dos gêmeos diria uma ano atrás, eu sei, mas também sei que eles podem ter mudado um pouco nesse tempo. Vide as nossas conversas anteriores naquele ano.
Me obrigo a relaxar um pouco quando ouço o resmungo meio sem graça do Caíque.
— É, tipo, a gente não fazia ideia, ficamos um pouco de cara...
— Mentira — eu o interrompo também, tomado de coragem e, convenhamos, de saco cheio. Caíque me olha confuso. — É claro que vocês faziam ideia.
É claro que eles faziam ideia. Não é hora pra ser hipócrita.
— Vocês sempre souberam — continuo, encolhendo meus ombros. — Não sobre eu e o Renan, mas só sobre mim. E sabem muito bem do que estou falando, mas não vou usar a palavra certa porque sei que a odeiam.
Há um certo desconforto na cena. Os meninos se ajeitam na arquibancada, parecendo indefesos. Ótimo, penso, finalmente estou com alguma vantagem. E essa vantagem é não ter vergonha ou medo de ser quem eu sou.
Não mais.
— Tá, tá. Pronto. A gente sabia. Só que ninguém nunca falou sobre isso, nem você mesmo. E pra você chegar assim e só, sei lá, sem aviso nenhum "se assumir" assim é meio... — Gabriel parece não encontrar a palavra certa.
— Real demais? — eu completo.
— Eu não sabia sobre o Renan — Gustavo abre a boca pela primeira vez, ao que o Caíque se vira pra ele e diz:
— Na verdade, eu pensei que ele tava de rolo era com o gringo lá. Não era? Tipo, era o que a gente ouvia falar e tal...
— E porque vocês nunca chegaram a perguntar pra ele? Na boa. — questiono, sincero. — Vocês só "ouvem falar" e saem tirando conclusões. Seria muito mais fácil só se importar com a verdade, ainda mais se é de alguém que até então vocês chamavam de "amigo". Já pararam pra pensar que talvez ele quisesse ter contado? Ou eu já quisesse ter contado há muito tempo?
Eles todos me encaram sem saber o que dizer. Nem eu sei de onde exatamente vem aquelas palavras, mas elas parecem me deixar mais leve, então faço questão que saiam.
Noto que os gêmeos se entreolham e sobem os ombros.
— Foi mal, Dani, a gente sabe que não deve ser fácil — Rafa diz, parecendo se desculpar. Eu aceito porque ele soa muito sincero. — Ninguém tá aqui pra te ferrar nem pra te esculachar não, tá? Relaxa. A gente veio foi dizer que, sei lá... Você e o Renan estando namorando ou não, pra mim não importa muito. Pra nenhum de nós importa muito se vocês estiverem bem com isso. Pronto. É a vida de vocês e ninguém tem que dar palpite algum.
Ouço murmúrios de concordância entre eles, as cabeças balançando em afirmativa.
— E não é como se alguma coisa fosse mudar, né... — Caíque dá de ombros.
Olho para os cinco por um momento e solto o fôlego dolorido. Estou aliviado e percebo que o medo vinha das possibilidades que minha mente criou sozinha. Com todo o histórico que eu tenho de gente que me odeia pelo que sou, achei que eles pudessem querer "tirar satisfação" ou coisa do tipo.
Mas parece que temos um avanço ali. Um verdadeiro avanço. Estou surpreso...
Estou um pouco feliz também.
Então reviro os olhos e solto, para aliviar o clima meio tenso:
— É, não é como se eu fosse virar hétero — os gêmeos riem e fazem caretas, assentindo. — E já fomos expulsos do time mesmo... Aliás, nem existe mais time, né?
— Vixe, é mesmo! Daquela vez lá, o Carlos tava falando sério então, né? E o Renan ficou do seu lado mesmo... — Caíque parece se lembrar do ocorrido meses antes, os olhos meio arregalados pelas constatações.
— Isso quer dizer que cês já tavam juntos naquela época? — Felipe pergunta. — Porque, tipo, o Carlos sabia...
— Não. — suspiro. — Carlos é meu primo, ele sempre soube de mim, mas ele não sabe nada do Renan. Só gosta de colocar lenha na fogueira que ele mesmo cria.
Volto a me sentar na arquibancada ao ver que os outros começam a conversar sobre o quanto o Carlos está mudado, o quanto ele tem ficado nervoso por nada, e o quanto ele vai odiá-los por estarem conversando comigo. Aparentemente nada disso é um problema mais.
Meu aniversário não poderia estar sendo mais esquisito. Mas um esquisito bom; definitivamente bom.
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