Fedra olhava para a confusão no campo abaixo pensativa. O que antes fora uma planície de verde exuberante que se estendia até onde a vista alcançava, agora era um terreno barroso de cor avermelhada, permeado por chamas que queimavam corpos e madeira e, no meio de tudo isso, a tempestade negra que crescia cada vez mais, apesar de seus esforços.
Quisera voar até Asmin Flor-Invernal no momento em que viu no que a batalha se transformara, culpá-la por não tê-la escutado e deixado que os humanos lhe roubassem o livro, mas o bom senso falou mais alto e ela decidiu que aquela conversa teria que esperar até o fim da batalha, se saíssem vivos daquilo.
E a sobrevivência parecia cada vez menos provável, visto que nada que as fadas e feéricos fizessem parecia ser suficiente para refrear a tempestade negra.
A Rainha das fadas estivera tão focada em decifrar aquele enigma, que mal percebera a agitação no exército élfico, que se preparava para atacar, recuperado da surpresa causada pela magia negra. Os malditos sequer entendiam o quão grave aquilo poderia se tornar? Ela perguntava a si mesma.
Não fosse Valatr para alertá-la do perigo, ela não teria percebido e, provavelmente, seria alvejada rapidamente por disparos das balistas e arcos que os elfos já preparavam. Sinalizando para que suas guerreiras manobrassem para o alto, para longe do alcance das flechas, ela pediu que Eisa se aproximasse. Haviam coisas demais a serem feitas e um número limitado de asas para agir.
— Você ainda está com o livro? — Ela gritou, sobre o barulho estrondoso da batalha abaixo.
— Está com Kyra! — Eisa respondeu, apontando para a Floresta.
— Ótimo. Vá com ela até a Árvore, destruam essa merda de uma vez por todas. — Fedra já não se importava com a opinião que as bruxas possam ter sobre aquele assunto.
Eisa apenas assentiu com a cabeça e bateu as asas, rumo ao local que a outra fada provavelmente estava escondida. Novamente confrontada com o problema à sua frente, Fedra descarregou sua magia na nuvem, mirando no centro, em mais uma tentativa fútil de atingir quem quer que controlava aquele evento.
Valatr retornara da Floresta e se unira aos seus companheiros da Cavalaria, descarregando fogo, água e todos os tipos de magia contra o exército élfico. Um olhar naquela direção e Fedra pôde perceber que ali também haviam problemas de alta prioridade.
Um grupo de dragões, mais de duas vezes maior que o de Valatr, se aproximava da batalha e a fada se sentia segura em presumir que eles não vinham para ajudar. Cabia, então, a ela e às suas fadas lidarem com o outro problema. Mas como?
Toda vez que a magia das fadas, a magia conhecida e usual, se chocava contra aquela magia negra, a reação parecia tornar as coisas piores. Uma explosão que fazia a nuvem recuar um pouco, então um contra-ataque que tomava a vida de mais algumas criaturas ao redor. E o processo se repetia toda vez que Fedra tentava algo diferente.
— Talvez a magia não seja a resposta. — A Rainha falou para si mesma. — Mas, então, o que é?
Enquanto tentava criar todo tipo de possibilidade em sua mente, ela continuava atacando. Não tinha opção. Ao menos, seus ataques pareciam estar, de alguma forma, atrasando um pouco o avanço daquilo.
Pois não era só o fogo negro, ela percebia. Por baixo das raízes das árvores, movia-se uma energia viscosa e maligna, que sugava a energia vital de tudo em que tocava, aos poucos se dirigindo cada vez mais para o interior da Floresta. Aquele era o maior dos problemas e, ao menos enquanto as fadas estavam atacando, aquilo não estava se movendo.
Perdida novamente em seus pensamentos, Fedra quase não viu que um a de suas tenentes sinalizava, chamando sua atenção para algo na Floresta. Ao olhar na direção indicada, um feixe de luz cegou a Rainha momentaneamente. Alguém tentava chamar sua atenção através da reflexão da luz solar em algum tipo de espelho.
Ela olhou novamente na direção de suas guerreiras, que indicaram com um sinal positivo que elas conseguiam manter os ataques enquanto Fedra verificava o sinal. Quem quer que fosse, teria que ter um bom motivo para tirá-la daquela batalha daquela forma.
No chão, enfiados entre as árvores, um grupo de humanos lançava flechas em vão contra a nuvem. Não tinham uma gota de magia, mas tentavam de toda forma lutar contra aquela coisa. Fedra podia respeitá-los por aquilo, ainda que nutrisse certa mágoa por terem roubado o livro. As bruxas e feéricos que corriam ao redor respeitavam a ordem da Matriarca para retornarem à Gruta, mas aqueles humanos pareciam determinados a ficar ali até que os elfos os matassem apenas para montar alguma resistência à magia negra.
— É bom que tenham um bom motivo para me chamar aqui. — Ela disse, assim que pousou entre os homens. Miger se aproximou, os cabelos negros ensopados no sangue de elfos.
— Rainha, acho que nós temos um plano para destruir isso. — Ele apontava para a nuvem de fogo negro.
— Você tem minha atenção. — Fedra admitiu.
— Essas runas — ele mostrou as gemas cheias de gravuras que os homens tinham trazido em sua jornada pelo mar — são imunes à sua magia, nos ajudam a lutar contra os elfos.
— Sim. E você acha que elas podem funcionar contra a magia negra também?
— Nós não achamos. — Um outro humano, loiro e forte, se aproximou. — Temos certeza. Protegeu Biattra quando ela tentou se aproximar de Lothar.
Ele apontava para uma bela mulher que, vestida em armadura e suja de sangue e lama — assim como todos os outros —, tinha lágrimas nos olhos e encarava todos ao redor com raiva, como se discordasse profundamente de tudo aquilo.
— O que aconteceu? — Fedra perguntou, sentindo o chão ser sacudido por mais uma explosão.
— Eles querem matar Lothar. — A mulher, Biattra, falou. — Eu tentei entrar lá para fazê-lo parar.
— Lothar, o escravo? — Fedra lembrava-se vagamente do nome, mas não tinha certeza. Miger confirmou a informação.
— Ele não é culpado por isso, fada. — Biattra continuou. — Não é má pessoa. Algo aconteceu de errado.
— Ela não entende. — Miger interrompeu a guerreira. — Seja Lothar inocente ou não, ele causou tudo isso. Talvez a única forma de acabar com tudo seja tirando sua vida.
Fedra suspirou, sentindo que, infelizmente, o chefe humano estava certo. Talvez aquela fosse a única saída.
— Qual é o plano? — Ela perguntou, por fim.
— Biattra não conseguiu chegar até o centro da tempestade. Mesmo com a defesa oferecida pelas runas, a magia começava a penetrar suas defesas e corroer seu corpo. Quando a tiramos de lá, mal conseguia falar. — Solar parecia extremamente desconfortável enquanto falava. — Mas as fadas são mais rápidas, podem entrar na tempestade por cima.
— Está sugerindo que uma de nós entre lá, protegida pelas runas, encontre o tal Lothar e tire sua vida? — Fedra sabia qual das fadas teria que fazer aquilo.
Um grito interrompeu a conversa. O grito de dor de uma fada que caía do céu. Se atingida por uma flecha élfica, ou por magia negra, Fedra não sabia, mas pôde sentir como se fosse em seu próprio corpo a morte de uma de suas irmãs. Tentando não se deixar afetar pela dor, ela suspirou e estendeu uma mão aberta para Miger.
— Muito bem. Prepare-me.
Miger assentiu e, imediatamente, começou a amarrar pedras nas vestes de Fedra, que sentiu a própria magia reagir a elas como se fossem correntes prendendo sua força vital. As pedras em si não emitiam energia alguma, mas pareciam nulificar qualquer força mágica de forma quase sobrenatural.
Solar ajudou o chefe a terminar tudo mais rápido. O exército élfico estava quase sobre eles, os sons dos passos de dezenas de milhares de inimigos já preenchiam os ouvidos de todos. Os malditos ignoravam totalmente a luta contra a magia negra, tentavam se aproveitar da confusão para ganhar uma vantagem na batalha.
Quando os dois homens terminaram de trabalhar, Fedra preparou sua espada e já ia levantar voo quando Biattra se aproximou e agarrou seu braço.
— Por favor, deixe-me ir junto. — A mulher implorou. — Talvez, se eu estiver perto o suficiente, ele me ouça!
— Largue disso, Biattra. Vai colocar toda a missão em risco. — Miger tentou argumentar.
— Ou talvez salvar a todos nós, caso Fedra não consiga matá-lo. — Solar defendeu a amiga.
— Eu a levo. — Fedra disse, mas se perguntava se conseguiria voar com a humana agarrada em si. — Vamos logo acabar com isso.
As duas levaram alguns segundos para se arrumar, encontrar uma posição em que a Rainha das fadas conseguisse voar sem que o corpo da humana lhe tirasse o equilíbrio. Assim que conseguiram, no entanto, Fedra levantou voo e, quase se arrastando no ar, seguiu até o epicentro da nuvem negra.
— Pronta? — Ela perguntou a Biattra.
— Espero que sim. — A humana respondeu.
Fedra fechou os olhos e mergulhou para o mar de morte abaixo.