LXXIV. Canção em Pedra

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Lyssa estava perdida. Presa em algum lugar entre estar desperta e dormindo. Sentia como se tivesse sido arrancada de seu corpo e agora sua alma assistisse àquela cena de longe, sem de fato entender o que acontecera. Não sentia seus braços e suas pernas, nem as asas que se agitavam em suas costas. Naquele momento, havia somente a imagem distante e inalcançável da cratera esfumaçada, do corpo carbonizado à sua frente, de uma pedra em forma de bruxa e uma bruxa viva que chacoalhava uma fada em busca de uma reação.

— Lyssa! — A bruxa gritava. — Lyssa, me responda, droga! — Ela estalava os dedos na frente do rosto da fada em busca de uma reação, mas os olhos desta permaneciam vidrados na cena que seu fogo criara.

Em algum lugar da mente da fada, uma voz gritava para que ela retornasse a si, dizia que ela tinha que reagir, que tinha que voltar à Floresta... mas a voz estava demasiado distante, quase não alcançava seus ouvidos.

Tempo se passou e a bruxa não desistiu. Continuou a chacoalhar e gritar com a fada, a bater em seu rosto e fazer cortes em seus braços com as garras compridas. Em algum momento, ela jogou um cantil cheio de água no rosto da criatura alada, mas não conseguiu reação. Após incontáveis minutos, a bruxa simplesmente desistiu e se aproximou do corpo petrificado da companheira e começou a cavar uma cova rasa.

Lyssa ouvia o som de mãos atacando furiosamente o chão, mas este se misturava ao som de passos e galhos se partindo, a uma voz doce e tranquila que vinha de uma elfa. O que estava acontecendo naquele momento? O que era ilusão?

A fada piscou os olhos muitas vezes antes de conseguir mexer o corpo e analisar a situação em que se encontrava. Lágrimas correram por seu rosto antes mesmo que conseguisse assimilar a paisagem. Alick Ferro-Brasil cavava um buraco ao lado do corpo petrificado de Azar Fura-Coração. Há um metro delas, alguns ossos envoltos em cinzas que se dissipavam com o vento, estava o que restava de Eralyn, o elfo assassino.

Engolindo em seco, Lyssa se aproximou da amiga, ainda um pouco confusa.

— Finalmente. — Alick exclamou ao vê-la se mexendo. — Achei que teria que carrega-la de volta à Gruta.

— O q-que aconteceu? — Foi tudo que a fada conseguiu dizer.

— Você sumiu, aquele maldito usou um momento nosso de distração e atacou Azar. — A voz de Alick era cansada e um pouco chorosa, como se ela estivesse se segurando para não deixar as lágrimas correrem por seu rosto também. — Ao menos você voltou a tempo de carbonizar o maldito.

Lyssa não disse mais nada. Apenas ajoelhou-se ao lado de Alick e começou a cavar.

Não tinha as mãos calejadas como as da bruxa, as raízes e pedras a cortavam como se fossem facas, mas a fada ignorou a dor e prosseguiu com aquela tarefa. Se não estivesse longe, talvez aquilo não tivesse acontecido. Se aquela elfa não a tivesse tirado de perto das amigas...

Quando a raiva crescia, ela sentia sua magia se agitar, sentia aquele lago de fogo borbulhar com ódio, pedindo para ser libertado. Com respirações profundas, ela conseguia se controlar e voltar a cavar. Cada punhado de terra tirado era uma nova dor, uma nova pena.

Nenhuma das duas disse uma palavra sequer até que o ritual fosse completado. Quando o buraco se tornou suficientemente fundo, fizeram um considerável esforço físico para por o corpo de Azar na cova. Lyssa ainda tentava controlar as lágrimas enquanto pensava se havia palavras a serem ditas naquele momento. Sequer conhecia os rituais de despedida das bruxas.

Como que ouvindo seus pensamentos, a Ferro-Brasil largou o livro maldito de Azar e encarou a cova, agora coberta por terra e pequenas pedras que elas colheram do chão ao redor.

Fura-Coração (COMPLETO - EM REVISÃO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora