X. Deserção

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Ainda não amanhecera, mas o céu já começava a clarear quando Eralyn terminou de enfiar seus pertences na mochila de viagem e saiu caminhando silenciosamente do acampamento, olhando uma última vez para o amontoado de bravos guerreiros que abandonava. No momento em que abandonasse seus companheiros, seria um pária, um maldito traidor, indigno de qualquer forma de perdão por parte deles e do Duque. Mas as visões que a Dama mostrara ainda martelavam sua cabeça, motivando-o a seguir em frente.

Quem quer que fosse, sua energia mágica ainda afetava os sentidos do guerreiro élfico, mesmo tento se passado várias horas desde o encontro naquele círculo de pedras antigas. O que ela mostrara, por algum motivo, parecera tão verdadeiro para ele quanto os soldados que dormiam sobre a terra úmida com a névoa da madrugada. O futuro sombrio de seu mundo, o futuro que ele fora incumbido de impedir.

Enquanto caminhava pelas fileiras até o perímetro externo do acampamento, Eralyn avistou Gehr, que dormia como todos os demais, e tentou resistir aos pensamentos nostálgicos que invadiram sua mente. Sentiria falta dos colegas, tinha certeza. Lutara ao lado destes elfos por milhares de anos, e agora os abandonava sem sequer dizer adeus. Na manhã seguinte, todos aqueles soldados estariam fervilhando de ódio por sua deserção e cada um deles estaria pensando numa forma extremamente dolorosa e eficaz de matá-lo.

Lidaria com estes quando a hora chegasse. Agora, tinha que focar em encontrar a bruxa e matá-la. Talvez, quando terminasse sua missão, ele pudesse explicar tudo ao Duque de Linea, que o perdoaria e, então, ele poderia retornar ao fronte para lutar. Se falasse agora, no entanto, ninguém acreditaria em sua palavra e o guerreiro seria taxado como louco e fanático. Tinha que fazer o que devia ser feito e nada mais.

Resoluto, ele evadiu os olhares das patrulhas e caminhou discretamente até o mato alto na ponta sul do acampamento. Mesmo à fraca luz que pintava o céu de azul escuro, seus olhos acostumados à escuridão conseguiam enxergar os detalhes da planície que se estendia adiante. Do alto da colina onde o Duque erguera acampamento, podia-se ver a extensão quase total das planícies de Linea e, no extremo leste destas, a linha negra amórfica que provavelmente indicava a fronteira da Floresta de Terralarga, situada entre o Terceiro e o Sétimo reinos.

Onde uma bruxa se esconderia num mundo de elfos? Ele se perguntava enquanto encarava a paisagem. Eralyn sentiu vontade de rir perante aquele pensamento. Eram tão poucos os lugares para onde aquelas coisas ainda podiam correr, mas ainda assim a lista era grande o suficiente para que ele, sozinho, talvez demorasse uns trinta anos para concluir sua missão. Precisaria confiar em seus instintos, o que não lhe agradava, e estes agora o mandavam seguir em frente.

E foi o que fez. Embalado pelos ventos, que o ajudavam a correr mais rápido, o guerreiro élfico correu para o sul na direção do oceano, esperando que alguma voz interna o avisasse o momento certo de dobrar à esquerda ou à direita. Conforme o sol caminhava pelo céu, ele por vezes parava sua corrida e olhava para trás, para o acampamento, rezando para que não houvessem batedores perseguindo-o. Ou não tinham notado sua ausência, ou não se importavam em perder um único soldado. A campanha seguia rumo ao oeste, rumo ao suposto lar das bruxas Flor-Invernal, não desperdiçariam soldados perseguindo um traidor que seguia em direção quase que oposta.

Sem caminho certo, Eralyn seguia pelos lugares onde a grama era alta o suficiente para escondê-lo de observadores menos atentos, mas ainda assim baixa para que pudesse caminhar com certa facilidade, sem tropeçar em pedras ou raízes. A planície era um lugar monótono, sempre mais do mesmo. O que não era grama, era um pequeno aglomerado de pedras. Quando havia uma árvore, era um tronco seco solitário que despontava do chão como uma agulha. Não tardou para que o elfo se entediasse e começasse a brincar consigo mesmo, tentando ocupar a mente com coisas interessantes.

Como sempre acontecia nestes momentos, sua mente acabava, involuntariamente, retornando aos assuntos que lhe chateavam, que o preocupavam. "Ao menos se aquela maldita tivesse me mostrado o rosto da bruxa", ele pensou. Se soubesse quem estava procurando, as coisas seriam bem mais fáceis - ou menos difíceis - e ele logo estaria retornando à legião para exibir ao Duque a cabeça da criatura. Numa estaca, ele concluiu com um sorriso no rosto. Levaria sua cabeça enfiada na ponta da espada, com o sangue seco espalhado sobre a lâmina de ferro branco.

Uma bruxa marcada não devia ser difícil de ser encontrada. Mas qual era sua marca? Física, mental, mágica? Após longa reflexão, Eralyn decidiu. Bastava torturar e matar todas as bruxas que encontrasse pelo continente na esperança de que uma delas revelasse a posição de suas companheiras e, possivelmente, a identidade da tal que ele procurava. Podia não ser tão fácil, mas era um plano que o agradava, com toda certeza.

Fura-Coração (COMPLETO - EM REVISÃO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora