VI. Ossos do Ofício

363 80 861
                                    

"Merda!" pensou Alick quando viu Lyssa ser jogada para trás pelo soco da Sentinela. A pequena fada caiu no chão com um baque surdo e não parecia decidida a levantar dali tão rapidamente. A bruxa que a golpeara abriu um sorriso, mostrando às amigas como era forte e poderosa. Derrubara a fada de três dias de vida com um único soco. Uau.

Do alto da árvore onde se escondera para assistir ao teste secretamente, a bruxa de cabelos negros pensou em intervir, pois sabia que aquele tipo de agressão era um exagero realizado somente para satisfazer as vontades macabras dos instrutores. O teste era feito para analisar habilidades e potenciais, não deixar olhos roxos e narizes quebrados, não para humilhar as jovens criaturas que se propunham a ajudar a Gruta no esforço de guerra. Era verdade que as bruxas não costumavam se dar bem com as outras criaturas, mas era necessário fazer concessões, comprometimentos, se o desejo era que todos permanecessem vivos contra os avanços élficos.

Alick sequer conhecia aquela Sentinela, nunca a vira por ali, mas imediatamente passou a detestá-la. Eram bruxas como ela que a lembravam do porquê de estarem perdendo a guerra e por que ter esperanças era sempre uma ideia de tolos e suicidas.

Ela resistiu à vontade de pular da árvore para ajudar a fada, no entanto. Se tinha que ser daquela forma, ela que encontrasse uma maneira de lidar com a agressão. Se queria ser uma guerreira, se queria ajudar às suas irmãs da Árvore, teria que lidar com aquele tipo de imbecis o tempo todo. Teria que aprender a lidar com alguns hematomas e ossos quebrados.

Agora, a Sentinela encarava o corpo estatelado de Lyssa com aquele mesmo sorriso no rosto e o punho fechado. Alick começou a temer pela vida da fada, a bruxa estava pronta para atacar mais uma vez assim que a pequenina se levantasse. Aos poucos, ela o fez. A fada de fogo, vestida em seus trajes de seda que lembravam a madeira cintilante da floresta, apoiou um dos cotovelos no chão, erguendo o corpo um pouco e encarando a bruxa, incrédula.

— Levante-se. — Ordenou a Sentinela. Lyssa esfregou o queixo, de onde pingava uma gota de sangue oriunda de sua boca. A fada tentou se por em pé, mas estava desnorteada e quase caiu novamente. — Levante-se!

Cambaleante, Lyssa finalmente apoiou-se nos dois pés e conseguiu ficar ereta para encarar a Sentinela a uns três metros da mesma. Alick observava tudo com um interesse preocupado, do alto de sua árvore. Com as duas mãos fechadas com força, a pequenina tentou imitar uma posição de guarda, mas era tão inexperiente nisso que qualquer amadora conseguiria quebrar aquela tentativa patética de defesa com meio movimento. A Sentinela se aproximou novamente e Lyssa deu um passo para trás, antecipando o golpe que viria. Alick já começava a sentir sua raiva transformar-se em acúmulo de poder mágico em suas veias. Seu corpo estava pronto para responder à ameaça contra a pequena fada. Por que? Ela não fazia ideia.

A Sentinela avançou novamente, num movimento tão rápido, praticamente imperceptível aos olhos, que chocou até mesmo as suas colegas que assistiam silenciosamente. O soco que ela deu no estômago de Lyssa a fez voar para trás novamente, mas dessa vez a fada estava um pouco menos despreparada. Alick percebeu que, apesar de ainda serem fracas, suas asas fizeram de tudo para que ela planasse sutilmente até pousar em pé alguns metros adiante.

— Terá que fazer melhor que isso se quiser fazer parte de nossas linhas, fadinha. — A bruxa falou, com deboche. — É isso que consegue? Que tipo de seiva andam produzindo naquela Árvore ultimamente?

Lyssa parecia a ponto de chorar. Como se já não estivesse nervosa o suficiente com toda aquela situação inusitada, agora enfrentava a ira de uma bruxa que não tinha sequer uma única razão para nutrir toda aquela raiva contra ela. Alick, novamente, sentiu aquele impulso de descer e ajudar a jovem fada. Quando a Sentinela avançou novamente contra a pequenina, pronta para enfiar-lhe a mão na cara novamente, a floresta estalou.

A bruxa Ferro-Brasil, em seu galho grosso, demorou para entender o que acontecera, assim como também fizeram todos os outros na clareira. Num momento, a Sentinela corria na direção de Lyssa para deferir um golpe e, no outro, a bruxa estava deitada há quase vinte metros de onde a fada se mantinha ereta e confusa, um rastro fumaça e folhas chamuscadas cobrindo a distancia entre as duas. O grito da bruxa ferida pareceu tirar todos de seu transe e, repentinamente, os recrutas gritavam em desespero enquanto algumas bruxas corriam até a companheira caída e os outros instrutores tentavam controlar a confusão. A jovem fada se mantinha ali, fixa em seu lugar, em choque.

Alick deslizou pelo tronco da árvore e, ignorando o olhar assustado de um jovem feérico pelo qual passou, correu até Lyssa.

— O que aconteceu? — Ela perguntou, tentando arrancar alguma reação da fada. Ao menos esta desviou o olhar da trilha de fumaça e encarou profundamente os olhos da bruxa Ferro-Brasil.

— E-eu... - Lyssa lutava para conseguir formar palavras.

— Acalme-se. — Alick ordenou. — Respire fundo e deixe a magia sair de seu corpo.

Ela estava carregada, percebeu a bruxa. O estalo que ouvira não fora causado pela fada, mas sim pelo poder que fluiu diretamente da floresta para suas veias, carregando o disparo realizado contra a Sentinela. E, mesmo após a destruição, ela ainda estava cheia de energia, pronta para soltar outra daquelas colunas de fogo, a floresta ainda a energizava, fazendo com que ela se parecesse com um arco retesado, pronto para ser disparado.

— Ei, Lyssa! — A bruxa tentou novamente. Dessa vez um pouco de lucidez surgiu nos olhos da garota. — Sou eu, Alick. Você tem que respirar! Deixe seu corpo se acalmar e relaxe.

— O q-que... - A fada tentava juntar palavras de forma minimamente coerente. — O que aconteceu?

"Se você não sabe, como que eu vou saber?", Alick tinha vontade de perguntar.

— Não foi nada. — Mentiu. Com o canto dos olhos, ela podia ver que o corpo da bruxa atingida estava chamuscado, provavelmente cheio de queimaduras que renderiam às curandeiras um longo e árduo trabalho. — Um acidente. Ossos do ofício.

— Leve essa aí até a Árvore. — Falou, finalmente, uma das bruxas. A Sentinela ferida, em seus braços, tinha o corpo chamuscado e sangrando. — Enquanto não aprender a se controlar, não poderá treinar com os demais.

— E-eu sinto muito. — Lyssa falou, a voz baixa e relutante. Ela parecia mais normal agora, o poder que tinha se acumulado agora retornava à floresta, ao seu fluxo natural. — Não sei o que aconteceu.

— Vamos. — Alick puxou a fada para longe das demais bruxas. — É melhor deixá-las em paz.

Lyssa foi com ela, mais empurrada do que caminhando por vontade própria. Os curtos cabelos castanho-claros estavam desarrumados e as roupas todas chamuscadas, em consequência do disparo mágico. Quando deixaram a clareira, caminhando a passos lentos e deprimidos, seguiram pelo caminho de volta para a Gruta de forma silenciosa. A fada não parecia disposta a falar, e Alick sabia muito bem que não deveria forçá-la, deixá-la ainda mais estressada. A bruxa estava determinada a não levá-la de volta para a Árvore, onde provavelmente se sentiria humilhada e fracassada. Não, voltariam para o dormitório na Gruta, onde ela descansaria e, no dia seguinte, treinaria com os outros.

Fura-Coração (COMPLETO - EM REVISÃO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora