XXXII. Pelas Sombras

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- Ao inferno que ficarei aqui parada. - Alick falou para si mesma, a voz baixa demais para que alguém do lado de fora a escutasse. Ela amarrava a espada na cintura, encarando a parede de pedra gelada da Gruta.

Pedira à Matriarca que a deixasse partir. Assim que a Fura-Coração a dispensara, ela seguira até o salão na entrada da cavernaa em busca de autorização para partir com Lyssa. Não confiava em Azar para mantê-las seguras e, não lhe importava o parecer de Estella, não via a fadinha com condições psicológicas e físicas para uma excursão além das fronteiras da Floresta. Mas não importava o quanto insistisse, Malthus Desven não a deixaria partir. Como se precisassem de mais uma bruxa ali, treinando os recrutas. Como se já não houvessem sentinelas o suficiente naquele servicinho entediante.

A bruxa respirou fundo, encarando sua pequena sacola e tentando se lembrar da lista padrão de mantimentos a serem levados naquele tipo de viagem, a sensação de que esquecera algo atormentava o fundo de sua mente. Uma última checagem não revelou seu erro e Alick decidiu, então, partir logo, antes que perdesse o rastro deixado pela batedora - se é que esta deixaria algum.

Sobre a calça e a camisa, ambas leves para favorecer uma caminhada acelerada, ela jogou o tradicional manto negro das bruxas, as mangas longas cobrindo sua marca de nascença no braço esquerdo - uma mancha escura disforme que contrastava com sua pele extremamente clara. Com o capuz cobrindo o rosto, ela amarrou a sacola às costas e saiu de seu quarto nos alojamentos, encarando o corredor longo.

Ainda estava vazio, naquele horário tão cedo. O sol ainda não terminara sua jornada noturna, ainda não surgira no horizonte distante, ao menos não totalmente. Os primeiros raios já brilhavam contra as folhas que formavam o teto fechado da floresta, mas a parte inferior ainda era tomada pela escuridão e pela geada da manhã. Os primeiros seres que despertavam em meio às árvores já partiam em suas atividades matutinas, por vezes levando casacos ou fogo mágico que os ajudava a manter-se aquecidos. Alguns, os menores e mais estranhos, aqueles com os quais Alick nunca conversara e sequer sabia os nomes de suas raças, não trajavam qualquer peça, apenas andavam nus pela floresta como se o frio não fosse congelante naquele momento.

Caminhando discretamente, a bruxa Ferro-Brasil procurou evitar os olhares curiosos das demais bruxas e de feéricos com os quais cruzava eventualmente. Ninguém lhe perguntaria o que estava fazendo se mantivesse a cabeça baixa e os modos silenciosos, assim esperava.

Conforme o frio da manhã foi lentamente se tornando menos congelante, mais criaturas podiam ser vistas caminhando entre as folhas. Uma fada passou por Alick, que se escondeu por temer que se tratasse de Estella, mas era apenas alguma outra daquelas criaturas aladas, que caminhava serenamente, acompanhada de um drakar.

Ela andou por cerca de uma hora antes de chegar à uma área menos densa da floresta, onde as árvores tinham troncos menos espessos e já não haviam tantos seres mágicos perambulando por entre as folhas. Alguns roedores e animais menores, sim, mas a Gruta estava muito atrás e as moradas luxuosas dos feéricos ainda mais distantes. Estava próxima à fronteira, além das torres de vigia e da maior parte das armadilhas mágicas. Somente o escudo etéreo que envolvia toda a Floresta Negra a separava do mundo élfico lá fora.

Por isso foi uma surpresa quando, com a audição atenta, Alick escutou uma voz irritantemente familiar. Era Malthus, percebeu ela enquanto recuava alguns passos na direção de um arbusto próximo. Se estivesse atento, o feérico a encontraria facilmente ali, mas, pela graça da Deusa, ele não parecia interessado em encontrar bruxinhas fugindo às escondidas do território da Matriarca.

Ao contrário, o guarda-costas da velha Ode conversava com uma fêmea feérica, uma bela moça cujos traços quase felinos faziam com que ela parecesse prestes a pular contra uma presa a qualquer momento. O que eles estavam fazendo ali? Alick se perguntou enquanto tentava permanecer completamente imóvel, silenciosa como a noite.

Fura-Coração (COMPLETO - EM REVISÃO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora