IV. Batedora

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Azar acordara sem saber se o que acontecera na noite anterior fora um sonho ou alguma loucura inventada por sua mente. Nunca, nem uma única vez, sua Segunda Visão tinha enlouquecido daquela forma. Era como se o lugar que ela via em sua mente fosse outro, que a fortaleza de Til Onag existisse de duas formas diferentes no mesmo lugar. Só podia ser obra de um feitiço poderoso. Maravilha, pensou, cheguei à mesma conclusão a que já tinha chego ontem.

O pão duro e velho que comia descia com dificuldade pela goela. Ainda que empurrada pela água, a comida era quase intragável. Talvez fosse seu mau humor, a frustração e o arrependimento que a estivesse fazendo sentir-se assim. Sua patrulha estava quase um dia atrasada, perdera tempo na noite anterior, distraída com as maravilhas do passado daquela fortaleza e ainda gastara ainda mais de suas energias tentando descobrir o segredo daquela porta. Devia ter seguido pelo caminho durante a noite, pensou ela. Quantas horas perdera ali? Ela nem sabia dizer. A bruxa quase socou o chão onde estava sentada, mas o bom senso a segurou. Era melhor não piorar aquela situação.

Não demorou muito para que seus pensamentos se voltassem novamente à porta, e Azar logo se pegou repassando a longa lista de feitiços de camuflagem que poderiam ter sido usados ali, tentando identificar como poderia quebrá-los sem o uso de magia. Revoltada, percebeu que, se não encontrasse a chave, a forma pretendida de se passar pela porta, nunca conseguiria passar sem ter que reverter a maldição daquela terra, se é que isso era possível. Suspirando profundamente, a bruxa Fura-Coração finalmente decidiu que, quando retornasse à floresta recrutaria ajuda para desvendar aquele mistério. Muitos dos segredos da magia não lhe eram conhecidos para que descobrisse a resposta sozinha e não tinha mais tempo para perder ali.

Se falhasse em apresentar-se às sentinelas a tempo, acumularia mais uma falha à sua aparentemente interminável lista de incompetências e seria provavelmente assassinada por Ima, a rainha das Fura-Coração. Com a Segunda Visão, a última análise do salão de festas mostrou exatamente aquilo que ela vira repetidas vezes na noite anterior: absolutamente nada. Às vezes era melhor recuar do que travar uma batalha com o bom-senso, pensou enquanto caminhava pelo grande portal na direção do corredor que levaria à muralha externa de Til Onag.

Do lado de fora, o dia era um daqueles em que uma bruxa gostaria somente de enfiar-se em sua própria cabana, fazer experimentos com poções e testar seus poderes mágicos, talvez tragando num charuto. A luz solar tímida tornava a paisagem das planícies acinzentada, nuvens demais cobriam o céu, ameaçando jogar irritantes gotas geladas de água sobre a cabeça dos animais que ali pastavam. O dia estava frio, não de maneira insuportável, mas extremamente irritante. Aquele tipo de frio que é suficiente para que seus pulmões ardam um pouco durante a corrida, mas que não faz necessário gastar energia com feitiços de aquecimento.

Azar tentou ignorar o mau tempo e a atmosfera depressiva daquele dia ao começar a corrida, sempre na direção do Rio Verde, para o norte. Mais dois dias e poderia retornar para seu lar entre as árvores da Floresta Negra. Mais dois dias para que pudesse finalmente largar seu relatório aos pés da Matriarca e esquecer dos deveres como batedora por uma semana, até que devesse retornar ao campo para procurar por tropas élficas.

Correndo na impressionante velocidade das bruxas, Azar parava a cada dois quilômetros no topo de uma colina ou de um monte de pedras para olhar em volta, procurar por quaisquer sinais da passagem de tropas, cavalos ou qualquer coisa que se assemelhasse a uma ameaça. Quase meio dia se passou entre essas corridas e paradas antes que ela precisasse, finalmente, parar para reabastecer o estômago com um pouco de pão envelhecido e carne salgada. Era quase como comer um pedaço de couro, amolecido apenas pelas poucas gotas de água que restavam em seu cantil. Precisava chegar ao rio antes que morresse de desidratação.

Nenhum sinal de exércitos marchando, nenhum batedor élfico, nada. Por todo o caminho entre Til Onag e o Rio Verde, não havia o menor sinal dos malditos orelhudos. Parecia até que eles tinham se esquecido daquela parte do mundo, abandonado para sempre seus desejos imperialistas na Floresta Negra. Azar sorriu com o pensamento feliz, mas não se deixou levar pela vã esperança. Do alto de uma rocha, ela podia ver as estepes ao norte, a Floresta no ocidente e as planícies por onde correra, ao sul e ao leste. À distância, os picos das Montanhas de Velveti no oriente eram visíveis somente por olhos aguçados.

Melancolia e solidão eram duas palavras que descreveriam bem aquele momento. A grama alta escondia os pequenos animais que ali habitavam e os grandes não estavam em lugar nenhum ao alcance da visão. Aquela quietude era estranha, não haviam pássaros no céu nem rebanhos na terra, tampouco podia-se ouvir os sons típicos da estepe. Somente o vento, infinito e poderoso, rugia por entre a grama e as esparsas árvores. Desconfiada, Azar lançou um feitiço de revelação.

- Filhos da mãe! - Ela exclamou, quando viu o pequeno grupo de cinco criaturas que se aproximava à distância, protegidos por um fraco feitiço de camuflagem. Dali ela não conseguia identificar o que eram, e teve de decidir rapidamente se deveria correr na direção da floresta para soar o alarme, ou aproximar-se para confirmar a possível ameaça.

Bem, as chances de passar vergonha com a segunda opção eram menores que com a primeira, então sua decisão já estava tomada. Um estalar de dedos foi suficiente para tornar Azar invisível para a maior parte das magias de detecção e, com cantil cheio de água e bolsa vazia, ela correu pelo mato da estepe na direção do pequeno grupo. Se fossem batedores élficos, estariam a todo momento lançando feitiços em busca de inimigos, então teria que ser mais esperta que eles.

A bruxa usou de todas as artimanhas que conhecia, de todas as técnicas de furtividade que aprendera naqueles anos como batedora das Fura-Coração, em sua corrida para leste, de onde o grupo vinha. Ao aproximar-se, silenciosamente, começou a ouvir o som de passos e dos equipamentos que eram carregados. Ninguém falava, a lentidão e irregularidade das passadas faziam parecer com que ao menos um dos integrantes do grupo estava machucado, com dificuldades para caminhar.

Não eram elfos. Ao menos uma boa notícia, Azar percebeu, quando mexeu alguns galhos para que conseguisse ver direito o que se passava. Eram três bruxas e dois daqueles escravos de orelhas redondas dos elfos, um dos quais tropeçava pelo caminho com uma das pernas sangrando, provavelmente perfurada por uma espada de ferro branco. O grupo estava em péssimo estado, pareciam recém-saídos de uma luta violenta. Se tinham encontrado tropas inimigas...

— Ei, vocês! — Azar gritou, desfazendo sua camuflagem e saindo detrás da grama. — Que aconteceu?

As três bruxas sacaram suas cimitarras, apontando-as para a origem da saudação. Azar ergueu os braços, mostrando que não queria mal a elas e fazendo questão que percebessem que ela era uma delas. Todos relaxaram, mas não pareciam confiar totalmente na visitante.

— Quem é você? — Perguntou uma das bruxas. Esta mantinha a espada em punho, a mais desconfiada das três.

— Azar, Fura-Coração. E vocês? Quem são e a que vêm?

— Eu sou Asmin, estas são Dust e Dreika. — A segunda bruxa falou, antecipando-se à primeira, a qual se chamava Dust. — Todas Flor-Invernal. Os escravos não falam e tampouco nos entendem. Resgatados de uma caravana élfica dois dias atrás.

— Seguimos para a Floresta Negra. — Dreika disse. — Vem de lá também?

Azar respondeu à pergunta com um aceno positivo da cabeça.

— Sou uma das batedoras. Atacaram uma caravana élfica? Estão rumando para cá? — A Fura-Coração sabia que a preocupação era audível em sua voz.

— Não. — Respondeu Dust. — Era uma caravana de abastecimento que servia à uma legião do Quinto Reino. A legião enfrentou um exército das Tormentadoras nas Rochas Baixas. Não estávamos com as irmãs quando foram dizimadas por aqueles malditos, mas conseguimos retribuir um pouco ao destruir a caravana.

— Como que as Tormentadoras conseguiram juntar um exército por conta própria? — Azar não conseguia imaginar como alguma rainha conseguiria unir uma aliança daquela forma.

— Ninguém sabe. Estávamos viajando para Etor quando encontramos a companhia de Tara Tormentadora. A maldita nos impediu de lutar, mas continuamos a acompanhá-las à distância. - Dust parecia irritada por não ter morrido junto ao exército de bruxas. — Quando vimos que tinham sido absolutamente dizimadas, decidimos voltar a Floresta, contar as notícias.

— Fizeram bem. — A Fura-Coração falou. — Devemos colocar as defesas em prontidão caso resolvam marchar sobre a Gruta.

— Irá nos acompanhar? — Dust perguntou, guardando finalmente a cimitarra na bainha. Asmin olhou de Azar para a companheira, parecendo ainda um tanto preocupada.

Azar ponderou. Já tinha terminado sua ronda, restava-lhe apenas apresentar o relatório perante a Matriarca.

— Bem, estou indo naquela direção de qualquer forma. — Decidiu, por fim, falando com um sorriso discreto e pegando alguns equipamentos em sua bolsa para curar a perna do escravo libertado.

Fura-Coração (COMPLETO - EM REVISÃO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora