XII. Gelo e Fogo

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- Não acha que eu deveria ser treinada na Árvore primeiro? - Já era a terceira vez que Lyssa tentava entrar naquele assunto desde que Alick a levara de volta à Gruta para que pudessem comer e beber algo substancial.

A comida era boa, um belo misto de frutas, folhas e carnes. Nesta última opção a fada não ousara tocar, a ideia de engolir algo que já fora vivo a fazia querer vomitar, mas as bruxas pareciam decididas a devorar todos os seres vivos da floresta, enfiando as mãos magras na carne gordurosa e saboreando cada pedaço fibroso e lambendo os dedos para tirar deles a gordura animal. Apesar do ambiente caótico e um tanto nojento, Lyssa se deliciava com os grãos e as sementes - que aprendera a amar nos dias que passara na Árvore -, aventurando-se também nos suculentos frutos de todos os tipos que estavam espalhados pela mesa à sua frente.

Ao seu lado, Alick não se fazia de tímida e devorava a comida da mesma forma que faziam suas irmãs, e sequer dirigia qualquer tipo de atenção especial à jovem fada que se sentava ali. Tinha ignorado Lyssa em todas as vezes que esta tentara conversar sobre qualquer assunto minimamente sério e importante, insistindo que refeições não eram o momento para seriedade, e sim para festejo e agradecimento à deusa. Agora, ao menos, ela parara de falar com a vizinha à esquerda para voltar sua atenção à nova amiga.

- Foi escolhida cedo demais. - Ao menos era uma resposta. Distraída, Alick não parecia disposta a dizer mais, mas ao perceber o olhar inquisidor da fada, revirou os olhos e continuou. - As fadas são treinadas na magia somente após a chegada do primeiro ano. Normalmente, as Sentinelas as escolhem depois disso. Dart, passe-me aquela coisa vermelha ali! - E, com isso, Lyssa desapareceu novamente da memória da bruxa.

- Maldita seja aquela Sentinela. - A fada disse, para si mesma, frustrada e cansada daquela confusão que era o almoço das bruxas.

Menor e mais fraca que as bruxas, Lyssa sentiu-se satisfeita rapidamente, e decidiu deixar as musculosas e truculentas criaturas para trás e seguir para seu quarto nos alojamentos da Gruta. O corredor era frio, úmido e estéril. Lembrava muito as bruxas, pensou enquanto caminhava por entre as pedras. Ao contrário da floresta lá fora, onde a magia fluía livremente, alimentando todas as coisas vivas, ali tudo era estático e sem vida. Era como a magia das bruxas, feita para as profundezas e para o sombrio, para a luta e pela sobrevivência.

A fada resistiu ao desejo de esquentar o próprio corpo com a magia que se agitava dentro de si. Se causasse um incêndio ali, provavelmente seria assassinada e as bruxas fariam fila para provar sua carne. Ela deixou os pensamentos macabros de lado e entrou no quarto, inspirando profundamente ao sentir o cheiro estranho que emanava da mobília. O cheiro de madeira morta e tecido velho.

Era claustrofóbico. Tudo ali era morto. Não era à toa que fadas não conseguiam adaptar-se muito bem às linhas de frente na guerra contra os elfos. Sua energia, sua mágica, era viva, vibrante, oposta a tudo aquilo. Lyssa sentiu que estava ficando louca ali dentro e que sua magia começava a se agitar descontroladamente em suas veias. Num passo rápido que era quase uma corrida, a jovem fada saiu daquele buraco o mais rápido e discretamente possível, sem chamar a atenção de qualquer uma das bruxas que zanzava por ali.

Nos passos finais até a entrada da Gruta, ela sentia que suas asas se agitavam freneticamente, tentando alçá-la ao ar instintivamente para que pudesse mover-se mais rápido, sem sucesso. Uma das bruxas que passava, caminhando na direção da sala do trono da Matriarca, a encarou com um olhar de suspeita e desdém, reconhecendo imediatamente quem era aquela que caminhava nervosamente pelo corredor.

Do lado de fora, a floresta era calma e pacífica, bela, quente e confortável. Lyssa sentiu os fluxos de magia que fluíam por todos os lados e abriu um sorriso perante a sensação. Não tivera tempo de apreciar aquele estado de paz desde que fora empurrada pela Sentinela até a Gruta. Desde aquele momento, não conseguira respirar e sentir-se viva daquela forma.

Fura-Coração (COMPLETO - EM REVISÃO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora