XXVII. Cidade dos Mortos

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Foi um massacre.

Eralyn tentara, auxiliado pela magia de seus companheiros, proteger-se dos sucessivos ataques do mago. Mas sua magia só fora suficiente para parar os primeiros três. Era um inimigo formidável aquele. Sabia furar as defesas dos elfos de diversas maneiras possíveis, desgastando-os e levando-os rapidamente ao ponto de exaustão. Então, como se fosse uma brincadeira, ele deixou que aquelas bestas atacassem com todas as forças para liquidar de uma vez os bravos elfos que ainda ousavam resistir.

Por mais de seis mil anos, Eralyn lutara ao lado de soldados como aqueles, nas legiões, em centenas de diferentes batalhas por todo o continente. Nunca estivera numa situação em que a morte e a derrota era certa. Bem, há uma primeira vez para tudo.

Apagara quando um daqueles animais o acertara com a parte chata da espada na cabeça. Tivera sorte. Muita sorte.

Agora, onde estava?

Sua mente vagava entorpecida pela negritude que era seu cérebro. Algo doía, mas ele não sabia o que era. Não conseguia abrir os olhos, ou eles já estavam abertos? Conseguia ver fogo, ruínas, soldados inimigos marchando pela cidade e cutucando os corpos que ainda respiravam. Ele se arrastou como pôde até uma casa próxima, onde se escondeu sob as ruínas, esperando que o dia amanhecesse, de alguma forma, diferente.

Já tinha amanhecido? Algo gelado caía sobre seu rosto repetidamente e o cheiro de carne queimada misturada a água invadiu suas narinas. Ele abriu os olhos, assustado.

O elfo respirava com dificuldade e não conseguia enxergar nada com o olho esquerdo, do lado onde fora atingido com a espada. Com dificuldade, ele movimentou as pernas e verificou se ainda mantinha todas as partes do corpo. Sim, estava vivo e inteiro, mas por quanto tempo permaneceria desacordado?

Era difícil ver o sol sob a fumaça que se erguia das construções incineradas, mas ele presumiu que o dia já tinha começado há algumas horas. Ainda que a fumaça fosse densa e escura, a luz que penetrava através dela era suficiente para que Eralyn enxergasse a destruição ao redor com a relativa nitidez que seu olho bom permitia.

O fogo mágico destruíra o palácio até a última coluna de mármore. A pedra derretida escorrera pelo calçamento da praça, as árvores tinham se transformado em cinzas e todas as casas ao redor, ou estavam em ruínas, ou tinham desaparecido junto à morada da família real. Rastejando para longe dos escombros, o elfo usou o que restava de sua magia para purificar o ar ao seu redor numa tentativa de não morrer sufocado pelas cinzas quentes. Não haviam corpos, percebeu com surpresa. Apenas marcas enegrecidas no chão, manchas carbonizadas no chão da praça. O mago transformara todos aqueles guerreiros em cinzas. Teria feito o mesmo consigo, não tivesse escapado para entre os escombros.

Que tentativa patética de resistência, lembrou Eralyn com o maxilar tenso enquanto se punha em pé lentamente. A raiva crescia em seu peito. O que esperava conseguir subindo até ali? Tivessem recuado até o porto, poderiam ter armado uma resistência digna junto a outros sobreviventes. Mas ele decidira subir, decidira tentar resgatar o rei, ou qualquer que fosse a merda que pensara naquele momento. E agora estavam todos mortos, tornados poeira por aqueles malditos feéricos.

Um som de pedras rolando fez com que o guerreiro cambaleante girasse sobre os calcanhares, movimento este que quase o fez cair no chão novamente. O barulho vinha de um amontoado de escombros que tinham sobrevivido aos ataques. Eralyn tropeçou até lá, alcançando a pilha em alguns segundos e escutando, pela primeira vez, o gemido de alguém preso em meio àquilo. Com as forças que lhe restavam, o elfo ergueu a maior das pedras e a tombou para longe, sentindo a mão queimar com a temperatura ainda alta.

O esforço fez sua cabeça latejar, a ferida pulsava como nunca. Ele levou uma das mãos até ali, tentando focar em ajudar o elfo que ainda estava preso sob as pedras. Praticamente sem conseguir ver o que estava fazendo, empurrou mais alguns escombros, revelando o corpo queimado de Deimos abaixo.

Fura-Coração (COMPLETO - EM REVISÃO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora