XXXI. Caçador e Caça

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Mancando, Eralyn forçou seu corpo para fora daquele buraco onde Édon o enfiara alguns dias antes. Quantos dias? Ele não tinha ideia. Sabia que ao menos um tinha se passado, pois vira a escuridão da noite no céu quando seu salvador saíra para a cidade acima em determinada ocasião. Agora, o sol brilhava alto no céu conforme ele tentava usar os braços para alcançar o topo da escada.

Há horas não via o elfo e, há mais tempo ainda, os grunhidos de dor de Deimos o vinham deixando louco. Não conseguia mais ficar ali parado. Enquanto lutava contra os ferimentos em seu corpo, lentamente se recuperando do encontro com o mago, o companheiro parecia ainda sofrer da mesma forma como quando fora resgatado debaixo das pedras fumegantes. Pouco a pouco, Eralyn conseguiu se levantar e dar alguns passos cambaleantes. Ainda não conseguia correr, o que lhe renderia grave  desvantagem frente aos seus inimigos, mas ao menos já conseguia se locomover sem ajuda. Tinha que partir logo, quanto mais tempo demorasse para sair de Alis, mais distantes ficariam os selvagens que a tinham destruído e menores eram as chances de encontrar seu rastro.

Do lado de fora, a fumaça já se esvaíra, as ruínas da grande cidade agora lembravam os esqueletos de gigantescos animais, um cemitério de prédios vazios e sem vida. Tudo que era de madeira queimara até virar cinzas, os corpos de elos caídos tinham desaparecido sob os destroços, sob a pedra derretida pela magia dos feéricos. Toda a estrutura portuária desaparecera e os únicos vestígios ainda visíveis dos navios que outrora preenchiam a baía eram a madeira  que flutuava a esmo sobre a água e as carcaças encalhadas dos navios que, numa tentativa desesperada de fuga, tinham encontrado seu fim nas barreiras naturais do porto.

Conforme caminhou pelas ruínas, ele não viu qualquer sinal de Édon ou dos outros sobreviventes. Era um deserto frio e sem vida, aquela cidade um dia tão grandiosa e brilhante. Sem conseguir usar sua magia para escanear os arredores, Eralyn teria que confiar em seus próprios olhos para manter-se seguro e seguir em frente. Um último olhar para Deimos, que ainda gemia em sua cama, e o guerreiro fechou o alçapão, deixando-o para trás. Sabia que, se o curandeiro retornasse, o forçaria a ficar ali em repouso por dias até que estivesse plenamente recuperado. Não podia esperar. Teria que somente torcer à distância pela recuperação do companheiro.

O elfo caminhou pelas ruínas desertas por quase uma hora, um ritmo demasiado lento para alguém que desejava alcançar o rastro de guerreiros feéricos. Mas a cidade destruída, aquelas vidas perdidas, toda aquele caos, tudo fazia com que um aperto crescesse em seu peito e tornasse a caminhada ainda mais insuportável. Os monstros que tinham feito aquilo, sem remorso ou qualquer hesitação, haviam de pagar, mas como? Ele caminhou lentamente, suportando a dor de cabeça que começava a retornar e aquela nova sensação que tomava conta de seu peito e sua mente.

Quando a Dama lhe mostrara aquelas imagens, aquele vislumbre de um futuro que ele sabia ser real, ele sentira ódio, chorara pelo mundo que viu ruir diante de seus olhos. Agora, vendo as coisas que ela previra tornando-se realidade, ele sentiu medo. Pela primeira vez desde aquela noite na mata, dentro daquele estranho círculo de pedra, ele temeu verdadeiramente pelo futuro de seu mundo. Não era um idealista, nunca fora, mas a simples ideia de perder tudo pelo qual vinha trabalhando há milhares de anos o chocava profundamente.

Ele tentou engolir o nó que se formava em sua garganta, seguindo em frente pelo agora esburacado e quebradiço calçado de pedra. Subiu uma colina e desceu a mesma, passando pelas ruínas de palacetes e vilas, de casas simples e lojas. Viu roedores correndo pelas ruas, destruindo o que pouco restava de corpos chamuscados mal reconhecíveis como pertencentes a elfos. Mas em momento algum escutou qualquer sinal de sobreviventes. Aqueles malditos não tiveram clemência nem mesmo com as crianças, com os inocentes.

Talvez não houvessem inocentes naquela guerra, ele pensou. Os elfos não faziam distinção entre crianças e adultos quando matavam aquelas raças imundas. Por que então o inimigo teria para com as suas? Respirando fundo e ignorando a dor em sua têmpora, Eralyn ergueu o queixo e caminhou em linha reta rumo à saída da cidade, onde os destroços dos Colossos jaziam em pedaços. Tinha que deixar a tristeza e o medo para trás, aqueles pensamentos que só lhe trariam dor e derrota. Tinha que focar na tarefa futura: encontrar os feéricos e rezar para que estes o levassem até a toca das bruxas. E, então, encontraria uma maneira de matar seu alvo.

Fura-Coração (COMPLETO - EM REVISÃO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora