XXXIV. Silêncio

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Silêncio. Essa era a palavra que definia sua vida.

Lothar, filho de ninguém, dono de nada. Escravo.

Nascera naquilo que mais se assemelhava a um curral, em meio ao feno e à imundície, tivera sorte de sobreviver. Sua mãe morrera no parto e seu pai era um mistério. Se tinha ascendência, uma família que um dia viajara até aquelas terras em busca de novas terras, nunca saberia.

Ao menos era bom naquilo que fazia. Em obedecer. Carregava equipamentos, cuidava da higiene dos acampamentos e fazia o que quer que seus senhores pedissem. Não importava o quão desagradável lhe parecesse a tarefa. Aprendera desde cedo que resistir às ordens era suicídio, fora subjugado e colocado em seu lugar quando criança e de lá nunca saíra. Na única vez que desafiara seu mestre, que tentara impedi-lo de matar um de seus iguais, perdera a fala para aquela magia estranha e fora vendido àquele maldito duque. Linea era o nome do território para o qual fora enviado. Terras verdes e cheias de vida, um lugar que seria lindo, não fosse a sociedade que florescia ali.

Fora obrigado a fazer tudo para aquele elfo, o imaginável e o inimaginável. Fora castigado quando suas costas tinham sido fracas demais para carregar as armas e os sacos de grãos. Fora castigado quando espiara uma das fêmeas do Duque em seu banho no lago. Nunca fora condecorado, nunca lhe tinham agradecido por seu excelente serviço. Sua única motivação tinha sido a perspectiva de permanecer vivo, naquela existência efêmera e infeliz, pois sabia que aqueles seres encontrariam uma punição pior que a morte, caso ele a desejasse.

Mas fora resgatado. Aquelas estranhas criaturas de dentes e garras afiadas, mas belas à sua forma, o tinham tirado daquela caravana e o tinham poupado. A ele e a Rolf. O outro mudo, que também fora privado da habilidade de se comunicar, agora estava deitado naquela confortável cama do chalé do curandeiro, recuperando-se dos próprios ferimentos. Estivera inconsciente desde que tinham chegado ali, as feridas e a longa jornada vinham finalmente cobrando seu custo, impedindo-o de se recuperar completamente, tirando suas forças à medida que o mago da água tentava curar seu corpo moribundo.

Era estranha a tristeza que Lothar sentia pela provável morte daquele que mais se aproximava de um amigo. Talvez Rolf e as bruxas que os tinham resgatado fossem o mais próximo de uma família que ele tivera em toda sua vida. Mas talvez aquelas criaturas não ligassem para ele ou para seu bem estar. Provavelmente queriam apenas saber quais informações úteis ele podia oferecer-lhes, no que podia ajudar em seu esforço de guerra. Provavelmente o descartariam uma vez que vissem que era totalmente inútil.

Mas, por enquanto, ele estava a salvo, rezando para seu Deus esquecido que o amigo se recuperasse. Rezando para que o curandeiro pudesse encontrar uma forma de restaurar suas falas, possibilitar que se comunicassem novamente.

Sim, ele compreendia tudo que as bruxas falavam, tinha plena consciência do que se passava o tempo todo, ainda que algumas coisas estivessem além de seu conhecimento. Não sabia o que eram aquelas criaturas e de onde tinham vindo. Vivera junto a elfos por toda a sua vida e imaginara que aqueles eram os únicos seres que habitavam aquelas terras. Agora, a cada dia que passava, ele descobria novas criaturas, das mais belas às mais bizarras, habitando aquela floresta encantada, tornando o lugar ainda mais lindo.

Encarava com interesse e curiosidade todos que passavam do lado de fora do chalé, todos que ali entravam em busca de emplastros e conselhos do feérico. Os estudava, tentando absorver cada informação que podia sobre suas características, seus modos e, principalmente, sua magia. Aquele poder infinito que aqueles seres pareciam ter, que estava além do alcance de seu tipo, o interessava mais que qualquer outra coisa. Cada uma daquelas criaturas parecia ter um relacionamento diferente com aquilo. Aquelas mulheres aladas ostentavam sua magia como se fosse um belo ornamento que circundava seu corpo, enquanto as bruxas eram mais discretas. Aqueles que mais se pareciam com os elfos eram contidos, mas poderosos, sua magia era bruta e selvagem.

E assim ele observava, silencioso, sem que ninguém percebesse, estudando e gravando tudo em sua mente. Talvez aquela informação fosse necessária um dia, talvez não. Mas conhecimento nunca fora algo que ele desprezara, ainda que tivesse uma quantidade extremamente limitada dele. Muito em parte à sua falta de habilidade nas letras, ele sabia.

Nunca lhe tinha sido ensinada a incrível arte da leitura e da escrita. Desde que perdera a fala, sua capacidade comunicativa fora limitada aos gestos e eventuais grunhidos nervosos que por ventura escapavam de sua garganta. Mas aquela bruxa, Asmin, parecia disposta a mudar isso. Em seu primeiro dia ali, ela escrevera alguns rabiscos num pedaço de papel e tentara fazê-lo entender o que estava escrito. Ainda que estivesse extremamente exausto, Lothar fez o possível para colaborar, para ao menos demonstrar a ela que ele compreendia o que ela falava, mas não tinha a menor ideia do que escrevia.

Asmin fora paciente naqueles dias em que o homem lentamente aprendia a, ao menos, segurar a pena e a forma correta de desenhar com ela no papel. Naquela manhã, ele finalmente aprendera a desenhar uma das trinta e duas letras daquilo que a bruxa chamara de alfabeto de Hyr. Ele sabia que a felicidade ficara estampada em seu rosto até o momento em que entrara na barraca e soubera, pela criada que ajudava o curandeiro, que Rolf parecia estar desistindo.

- Não há mais nada que possamos fazer por ele. - Dissera-lhe a fêmea alada, encarando-o com os olhos tristes. - As feridas do corpo estão curadas, mas suas forças parecem esgotadas. Ele não quer, ou não consegue, lutar para despertar.

"E não há nada que possa ser feito?" Ele queria perguntar. Sentiu a raiva aquecer seu rosto, a vontade de lutar contra aquilo, o ódio que sentia de si mesmo por não conseguir expressar seus sentimentos. A criatura o encarou, um olhar carinhoso que indicava que ela compreendia sua dor. Talvez fosse um olhar ensaiado todos os dias frente ao espelho, talvez ela realmente compreendesse sua dor. Ele provavelmente nunca saberia.

Mais tarde, o curandeiro foi até o chalé e repetiu exatamente as palavras de sua ajudante, deixando-o ali, novamente sozinho, sentado ao lado da cama e rezando. Rezava tanto para os deuses que os elfos o tinham ensinado a adorar quanto para o Deus único original de seu povo. Não se importava qual deles o escutaria, queria apenas que o amigo tivesse forças para reagir, para lutar contra a própria situação, para retornar ao mundo dos vivos. Já não sabia quantas horas tinham se passado quando seus olhos finalmente cederam á exaustão e ele mergulhou em um sono profundo, ainda sentado no banco de madeira.


Lothar acordou com um sobressalto, percebendo que alguém sacudia seu ombro. Um vergonhoso grunhido gutural escapou de seus lábios devido ao susto, o que fez com que levasse as duas mãos para cobrir a boca. Asmin, que o acordara, sorriu.

- Trouxe um pouco de comida. - Ela esticou um vasilhame com algumas frutas, pão e algum tipo de queijo. Um banquete, se comparado às rações que comia quando sob propriedade de seus antigos mestres. Sua mão foi direto até o queijo. - Imaginei que estivesse com fome.

Ele a encarou enquanto levava o maravilhoso alimento até a boca. Era macio, cremoso e fresco. Sem gosto, no entanto, como tudo que ele ingeria. Mas era comida, pensou enquanto segurava uma maçã. Comida de verdade, cultivada e preparada ali naquela maravilhosa floresta. Quando esticou a mão para alcançar um pequeno e desconhecido fruto vermelho, a bruxa pôs o recipiente todo em seu colo, deixando para ele toda a comida.

- Tivemos que regular suas refeições nos primeiros dias pois não sabíamos o quanto seu estômago aguentaria. - Asmin falou, o sorriso caloroso tornado assustador por aquelas presas afiadas. - Agora, pode comer à vontade.

Lothar deixou que aquelas palavras assentassem em sua mente.Nunca ouvira algo tão amável, tão belo, em toda a sua vida. Ele encarou o amigo moribundo, perguntando-se se um dia ele acordaria para ver aquele paraíso no qual tinham ido parar. Com a fruta vermelha em uma das mãos, com o toque reconfortante da bruxa em seu ombro e o corpo inerte de Rolf à sua frente, o escravo olhou para o teto da cabana com os olhos marejados e, pela primeira vez em muitos anos, ele se permitiu extravasar todos os sentimentos que o inundavam. Pela primeira vez desde que fora castigado da pior maneira possível, desde que tivera a fala roubada por um ato de desobediência, ele chorou.




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*Este capítulo possui 1466 palavras*

Fura-Coração (COMPLETO - EM REVISÃO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora