XVII. As Portas de Alis

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O estalar da chibata sobre o ombro dos escravos puxou Eralyn para longe de seu devaneio inútil. Os orelhas-redondas cantavam baixo o que parecia ser uma oração naquela crua e primitiva língua que costumavam falar. O murmurar de tonalidade menor era lamentavelmente doloroso e provavelmente fazia referência à dura vida à qual aquelas criaturas estavam destinadas. Outra chicotada, alguns gemidos, menos cantoria e mais movimentação. Aquelas pedras não caminhariam sozinhas até os portos de Alis.

Pela estrada que ligava o quinto e sexto reinos, cortando o continente de norte a sul, a longa coluna de escravos e capatazes transportava, sobre gigantescas esteiras de madeira, o carregamento de pedras oriundo das pedreiras setentrionais até os navios estacionados nos portos sulistas. Eram lentos e patéticos, fracos e efêmeros, aqueles escravos. Eram, no entanto, mão de obra abundante, fraca e pouco suscetível a revoltas contra seus senhores. Sabiam reconhecer seu lugar na existência, a própria inferioridade. A quem eles oravam, portanto, pouco importava para Eralyn ou para qualquer outro elfo, desde que continuassem a fazer seu trabalho de forma minimamente decente.

O tortuoso caminho por entre os acidentes geográficos da planície era delineado pelo belo calçamento de pedra cinza assentado pelas mãos dos ancestrais daquelas mesmas pobres criaturas que agora transitavam sobre ele. As estradas que cortavam os treze reinos, ligando as cidades e povoados, eram as veias daquela grandiosa sociedade. Já os escravos, estes eram o sangue, o suor e as lágrimas da mesma. Faziam com que funcionasse o comércio, a mordomia e a luxúria. Eralyn não conseguia ver um futuro onde aqueles seres não estivessem ali para auxiliar os elfos em sua sacra missão. Ao menos uma das raças menores mostrara-se útil para o mundo dos elfos, pensou ele, sorridente.

Alongando-se uma última vez antes de seguir sua corrida rumo ao sul, o guerreiro élfico percebeu que alguns dos escravos o encaravam de esguelha, os rostos cansados e maltratados cheios de rancor e raiva reprimida. Dizer que aquelas coisas reconheciam seu lugar naquele mundo definitivamente não era o mesmo que dizer que aceitavam sua situação e amavam seus donos e mestres. Percebendo o desvio da atenção de seus comandados, um dos capatazes, que caminhava ao lado da estrada e em meio à grama, gritou uma ordem para que trabalhassem mais e estalou o chicote aos pés dos escravos distraídos.

- Segue em frente, viajante. - Anunciou o elfo que segurava a chibata. O peito nu do capataz brilhava sob o sol, o suor de uma manhã de caminhada reluzia quase tanto quanto aquele que brilhava sobre os escravos. - Não vês que estais atrapalhando?

Não havia motivo para responde-lo. Estava, sim, atrapalhando, pensou Eralyn. Pouco se importava com o capataz imbecil ou com a carga que os malditos carregavam, mas se importava em terminar logo sua missão e, para tal, não poderia enfiar-se em confusões com as elites mineradoras do Quinto Reino. Deixar-los-ia em paz uma vez que terminasse de beber de seu cantil e relaxar um pouco as fatigadas pernas.

Dois dias de viagem o haviam deixado exausto, muito mais do que esperava que estaria. Talvez ainda não tivesse se recuperado totalmente do esgaste mágico ocasionado pela batalha contra as bruxas naquele outro dia. Estava há menos de um dia da passagem de Alis e a pelo menos dois até a cidade em si. Se corresse, conseguiria chegar ao ponto em que as duas montanhas se tocavam, formando um vale estreito por onde a estrada seguia seu caminho irrefreável.

Era uma paisagem e tanto, pensou enquanto encarava o horizonte ao sul. As duas montanhas erguiam-se abruptamente, interrompendo a monotonia da planície, sua solidão destacando-as do restante do mundo. Os picos gelados eram quase invisíveis em meio à névoa baixa que se colava à encosta como um animal abrigado em sua toca. Aos pés dos grandes monumentos naturais, a grama alta dava lugar a pequenas árvores e riachos alimentados pelo gelo do cume distante atraíam a presença de todos os tipos de animais.

Além das montanhas, mais distante do que as pernas de Eralyn poderiam carregá-lo antes do sol se por, ele sabia que a estrada se dividia em dezenas de ramificações, seguindo para as muitas cidades portuárias do sul. A cidade de Alis, metrópole e centro militar, abrigava também o maior porto do Sexto Reino. Um lugar perfeito para deixar seu rastro desaparecer em meio à multidão e ao cheiro de peixe podre. Era para lá que devia ir para conseguir executar a primeira parte de sua missão: sumir do mundo, deixar que a Legião o procurasse em vão.

O elfo desertor, sem levantar quaisquer suspeitas, guardou seu cantil na cintura - havia pouca água, esperava aguentar até o final do dia para enche-lo novamente nos riachos - e, após respirar profundamente, partiu novamente em sua corrida acelerada, muito mais rápido do que a coluna de escravos sequer poderia sonhar em viajar.

Em pouco mais de uma hora Eralyn deixara os comandantes que lideravam a coluna para trás, olhando para eles enquanto passava, tentando identificar a que casa serviam, mas não havia nenhuma indicação clara. Provavelmente eram uma companhia independente, então. Um elfo de face serena e neutra era definitivamente o líder, vestido de roupas vermelhas e brancas pomposas e sendo cuidado o tempo todo por alguns escravos que caminhavam junto à liderança. Os outros dois pareciam ser seus filhos, ou talvez simples criados, mas eram claramente mais novos, inexperientes e fracos que o outro. Sem tempo ou paciência para prestar qualquer tipo de cumprimento aos empreendedores, o guerreiro virou o rosto novamente para frente e seguiu sua viagem.

O sol atravessou a abóboda celeste antes que o elfo pudesse traçar seu caminho até a Passagem. Tinha calculado mal o tempo, e teria que atravessar a pequena parcela restante da distância na escuridão noturna. Ao menos a lua ajudaria a iluminar o caminho, pensou, o que pouparia a necessidade de um encantamento para aguçar sua visão.

Os pequenos animais que bebiam da água do riacho saíram de perto no momento em que Eralyn aproximou-se, seus ruidosos passos fazendo com que as criaturas temessem a presença de algum predador. Não estavam errados, pensou o elfo, e seria interessante ter algo para comer que não fosse aquela carne salgada que arranjara entre as provisões da Legião. Com um simples toque de sua magia, um dos roedores que tentava escapar de seu alcance morreu asfixiado, caindo morto no chão após gritar e chutar o ar por alguns segundos.

O fogo improvisado que Eralyn ascendeu sobre os galhos secos foi o suficiente para torrar a carne da ratazana e nada mais. Na escuridão da noite, sob o olhar atento da lua, o guerreiro élfico devorou a carne com toda a voracidade que vinha crescendo desde a batalha. A gordura satisfez se paladar e a água coletada do riacho ajudou a empurrar a carne fibrosa até seu estômago. Satisfeito, pela primeira vez nos últimos dias, ele encarou as montanhas que se avolumavam sobre o vale, sobre a estrada, encarou as portas de Alis, de onde a Guarda dos Deuses protegia o Sexto Reino e seus habitantes.



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