XXVI. O Despertar da Chama

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Uma explosão acordou Valatr de seus sonhos. A montanha estava quieta, serena como sempre estivera. Eterna e poderosa. A explosão acontecera em outro lugar, longe dali, numa cidade alva, poderosa. Ele viu uma gigantesca estátua ruir sob a energia mágica dos feéricos. Era Alis, percebeu. A cidade élfica fora destruída e ele presenciara tudo em seus sonhos.

Um rugido vindo do topo da montanha o fez perceber que Delétrion tivera o mesmo sonho. Chamas azuis iluminaram o cume enevoado, quase invisível daquela distância, sinalizando ao mundo que ali descansava um dragão. Um rugido de luto e raiva, uma necessidade de justiça transmitida através do elo compartilhado por besta e mestre. Valatr enviou uma ordem para que o animal se acalmasse. 

Quando o som do fogo cortando o ar gelado finalmente cessou, o cavaleiro tirou sua atenção daquele fato e tentou focar seus pensamentos no cumprimento das atividades diárias. Quebrou o jejum com um pouco do cordeiro que o dragão caçara na tarde anterior e algumas frutas que ele mesmo colhera nos pomares ao sul. A água que bebia era o próprio gelo que descansava sobre a pedra, derretido com uma pequena dose de seu fogo mágico. De cantil e barriga cheios, o mestre de dragão ponderou quais seriam seus próximos passos.

- Talvez devesse viajar até Alis. - Falou para si mesmo em voz baixa. A garganta ardia por conta do vento cortante que batia contra a encosta da montanha.

Seriam ao menos quatro dias voando, isto é, se Delétrion conseguisse percorrer o trajeto ininterruptamente. Com paradas para descanso, o tempo aumentaria em pelo menos um dia inteiro. Valatr suspirou profundamente, encarando o horizonte esbranquiçado pela neve e tentando decidir se enfiar-se nas intrigas dos elfos valia seu tempo e o desgaste que a viagem lhe traria.

Um barulho que se parecia com o de trovões à distância denunciou que o dragão levantara voo. Pelo Elo que compartilhavam, o mestre soube que o animal queria viajar. Ele desceu, batendo as asas fortes contra o ar frio, até a abertura na pedra onde Valatr se abrigara durante a noite. As escamas avermelhadas, num tom escuro que se assemelhava à cor do vinho, brilhavam contra o sol nascente e refletiam a luz contra a pedra. Sob aquela luz, parecia que o animal brilhava com uma luz própria. O mestre encarou, maravilhado, conforme as pernas grossas bateram contra o chão, levantando neve e poeira em sua direção.

- Vejo que já tomou sua decisão, amigo. - Falou ele ao dragão. O animal o olhou com os grandes olhos felinos, reafirmando seus sentimentos através do elo. - Acha que essa confusão toda pode nos levar até a Aliança? - O animal bufou, lançando uma coluna de ar quente e úmido na direção de seu rosto.

Há anos Valatr e Delétrion vinham procurando os povos perseguidos na esperança de intermediar um acordo entre eles e os reis élficos, acabar com aquela guerra de uma vez por todas sem que mais raças fossem caçadas até desaparecerem da terra. Era provavelmente uma esperança fútil, infantil até, mas desde que aquele dragão o agraciara com o Elo, o mestre passara a enxergar o mundo com outros olhos. Deixara as picuinhas ideológicas de seu povo de lado, jurara proteger e auxiliar qualquer um que necessitasse, sem prestar atenção no formato da orelha ou no tipo de magia que este praticava.

Tinha conquistado a inimizade de onze dos treze reinos, assim como a maior parte de seus companheiros da Cavalaria. Dalária e Athel, os únicos monarcas que não os tinham prometido a morte, os únicos que viam os mestres de dragão como uma peça importante na balança do mundo, ainda que participassem ativamente das guerras dos treze reinos.

- Não concordo com uma única palavra do que diz, - dissera-lhe uma vez Dalária enquanto os dois discutiam em frente ao seu trono - mas acredito que um dia os seus hão de mudar de ideia. Até lá, tem passagem livre por meus territórios, mas não deve interagir com meu povo.

Valatr divertia-se ao lembrar daquela rainha. Uma contradição ambulante, sempre disposta a ouvir, mas nunca a mudar seus ideais. Bem, pensava o mestre, talvez a compreensão seja uma benção concedida somente àqueles agraciados com o Elo.

- Convenceu-me, amigo. - Ele disse, após alguns minutos, para Delétrion que o encarava pacientemente. - Trate de voar rápido, antes que eu me arrependa. Pousaremos em Layan. Há tempos não vejo Tysha. - O mestre pôde sentir a desaprovação do dragão em relação àquelas palavras.

Valatr não demorou muito para por a sela sobre o gigantesco lombo do dragão. Em poucos minutos, arrumou todas as tralhas que carregava consigo, as amarrou naquele equipamento e, com um movimento ágil, subiu nas costas de Delétrion.

O dragão se virou na direção do sol, a luz da manhã aquecia lentamente a encosta gelada da montanha. Com um movimento rápido das pernas fortes, ele deu um salto no ar e bateu as asas, causando um redemoinho na neve abaixo, e partiu para o alto. O ar rarefeito não afetava Valatr, que já se acostumara àquelas alturas, e o frio cada vez maior era compensado pelo calor exalado pelo corpo do animal sob suas pernas. A dureza do couro da sela ainda incomodava suas pernas, mesmo após todos aqueles anos, mas era uma dor à qual ele se acostumara, um pequeno preço a se pagar pelo prazer de levar aquela vida.

Quase duzentos metros acima do cume da montanha, Delétrion fez uma curva repentina, deixando o sol às suas costas e virando-se para o sudoeste, na direção de Layan, uma pequena cidade agrária no Sexto Reino. À sua frente estendiam-se os cumes das montanhas menores, o fim de uma cadeia que se estendia por todo o sudeste do continente, formando uma muralha que separava o mundo élfico do Mar Ancestral, por onde seus ancestrais um dia tinham navegado para conquistar aquelas terras selvagens.

De cima do dragão, Valatr viu o sol caminhar pelo céu, o dia passando rapidamente conforme o animal acelerava na direção de seu objetivo. Quando finalmente avistaram o aglomerado de casas simples que constituíam a pequena Layan, o mestre de dragão podia jurar que seu traseiro comemorou a perspectiva de finalmente deixar o lombo de Delétrion. Com um suspiro, ele lembrou ao animal que deveriam descer ali, sob o olhar atento dos aldeões e guardas da cidade.

Não era permitido, ele sabia. Mas ajudara aquelas pessoas inúmeras vezes, elas tinham consigo uma dívida velada. Caçara quando sua comida acabara durante o inverno, aquecera sua lenha quando a madeira fora molhada pelas chuvas e os protegera de ataques mais vezes do que conseguia contar. Era amigo daquele povo, e aquele povo era seu amigo. Já Tysah, bem, a bela elfa que comandava aquele amontoado de agricultores tinha uma história com Valatr. Uma história longa e cheia de altos e baixos.

E foi justamente o rosto dela que ele viu sobre a paliçada da cidade quando Delétrion pousou sobre a grama alta, esmagando as plantas sob suas patas.



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*Este capítulo possui 1191 palavras*

Fura-Coração (COMPLETO - EM REVISÃO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora