II. Lua Crescente

944 151 1.2K
                                    

A primeira noite da lua crescente era o momento perfeito para visitar a antiga fortaleza élfica que descansava sobre as rochas brancas de Til Onag, à beira do Mar Interno. Uma fina camada de neve cobria as ruínas abandonadas, deixando marcadas as pegadas de Azar conforme ela caminhava pelo pórtico arqueado que um dia ostentara uma grande porta de mogno escuro.

Com sua Segunda Visão, ela conseguia sentir a aparência original do lugar, uma cintilante fortaleza que fora lar de um Grão-Duque élfico séculos atrás. As paredes, um dia brancas com detalhes de cor púrpura, agora eram negras e rachadas. O telhado dourado das torres e das estruturas internas tinha desaparecido e dado lugar a árvores que cresciam por dentro da construção e abriam caminho contra a rocha na direção do céu. O caminho pelo qual milhares de elfos um dia tinham caminhado, agora era vazio e sujo. Os pés da bruxa Fura-Coração batiam contra o calçamento antigo, o barulho ecoando pelo prédio vazio.

Quando atravessou o portal, Azar abriu um sorriso malicioso, o rosto magro e anguloso cintilando em prazer macabro, e bateu com as garras compridas na pedra fria. O luar era a única fonte de luz ali — era mais do que ela precisava para se locomover — e dava ao lugar uma atmosfera metálica e serena, os tons negros tornando-se acinzentados. O que um dia fora um grande salão, lar de grandes festas e cerimônias daquele povo maldito, agora era apenas um grande espaço vazio ocupado somente por um gigantesco carvalho que ali crescera.

Ver as ruínas do ducado élfico a encheu de esperanças. Esperanças de que um dia todas as terras dos orelhudos fossem como aquele lugar: desoladas, mortas e esquecidas. Esperanças tolas, vãs, mas ainda assim, esperanças. A bruxa parou sob os galhos da árvore e encarou a vida que deslumbrava em meio à morte. Era assim que se sentiam os seus, pensou. Eram a vida que tentava sobreviver a um ambiente hostil, assassino. Viviam escondidos entre as pedras e as florestas mais densas, sobrevivendo aos animais e à onipresente ameaça dos exércitos élficos.

Se alguém dissesse aos primeiros habitantes do mundo que um dia todos estariam correndo das tropas inimigas como ratos correm de uma tempestade, provavelmente todos ririam e beberiam juntos até o desmaio. As primeiras criaturas do universo, os poderosos seres cuja vida fora um dom entregue pelos próprios deuses, eram perseguidas e exterminadas como a pior das pragas por aqueles malditos elfos. Midgellers, fadas, trolls, etérials, gigantes; todos que um dia tinham sido inimigos, agora se refugiavam juntos nos lugares mais remotos da Terra.

"Eu não", pensou Azar, convicta. Era seu dever patrulhar aquelas terras e descobrir a localização dos exércitos inimigos, para então correr de volta para os esconderijos e avisar a todos. Era seu dever ser a primeira linha de defesa de seu povo.

Ou, ao menos, era com essas palavras que ela tentava convencer a si mesma de que era útil, necessária. Uma pária, sim, mas enviada para realizar uma tarefa importante que somente ela, com suas habilidades de camuflagem, conseguia desempenhar.

Tentando esquecer os pensamentos melancólicos, a bruxa saiu da frente do carvalho e caminhou rumo às entranhas da fortaleza, onde restos de móveis e decorações ainda podiam ser identificados por um olhar bem atento. Não eram somente pedaços de madeira podre espalhados pelo chão, eram resquícios de vidas há muito interrompidas pela Tempestade das Bruxas.

Azar voltou a sorrir ao lembrar-se das histórias contadas sobre a última grande vitória de seu povo contra os elfos, a vitória que tinha destruído aquela mesma fortaleza, matando todos os seus habitantes e excomungado a magia que ali prosperava.

O vidro quebrado das janelas do grande salão de Til Onag ainda sobrevivia, espalhado pelo chão onde damas e cavalheiros um dia tinham dançado solenemente. Os cacos rachavam sob os passos da bruxa que, em sua segunda visão, percebia todo o esplendor que aquele lugar um dia tivera. Os vitrais coloridos representavam as imagens dos antigos elfos que tinham cantado a Canção da Longa Primavera, as luzes mágicas enchiam o lugar de vida e os aristocratas bailavam lindamente em toda sua arrogância magnífica. Deixando-se levar pelas imagens que passavam no fundo de sua mente, Azar dançou junto ao ritmo da música que já não tocava há séculos. Um, dois, três, um, dois, três; ela repetia para si mesma, os braços imitando a presença de um parceiro de dança.

Quando abriu os olhos, ela percebeu que tinha atravessado o salão ao lado de seu parceiro invisível, embriagada pela vontade de dançar. "São assassinos e genocidas, esses elfos, mas têm estilo", ela refletiu encarando o salão. Ela deixou que a Segunda Visão ocupasse seus olhos, passando a ver e ouvir somente aquilo que já estava morto, que existia somente no Éter, nas memórias e nos espíritos.

Os casais de elfos, altos e bem-vestidos, giravam e giravam ao ritmo da valsa. A orquestra tocava lindamente, as notas flutuando pelo salão junto à energia mágica que inundava o lugar. Novamente perdida naquela atmosfera inebriante, Azar se deixou levar pelos movimentos e pela beleza da música, esquecendo-se por um momento do ódio que nutria pelos donos originais daquele lugar.

Perdida na ilusão do passado, a bruxa só parou de dançar quando tropeçou em algo, imediatamente sendo jogada de volta à realidade presente no momento em que seu corpo encontrou o chão.

Tinha caído sentada nos degraus de uma espécie de palco, onde a orquestra um dia tocara para os elfos. O chão de pedra se encontrava rachado e desgastado, destruído pelo tempo e pela força dos elementos, assim como o restante daquele lugar.

Sentada no chão, frustrada, ela encarou o espaço ao redor e sentiu uma estranha sensação surgir na base de seu crânio. Algo parecia fora do lugar, como se suas visões estivessem confusas. Era quase como se cada uma estivesse vendo um lugar diferente, um no passado e outro no presente. Com um tapa no próprio rosto, Azar tentou recuperar os sentidos, que começavam a se esvair devido à confusão.

Com o olho da mente, sua Segunda Visão, ela via o salão vivo e próspero, enquanto que com os olhos do corpo, a decadente e destruída fortaleza. Não conseguia entender que tipo de peça sua mente estava pregando, mas não via graça alguma. Algo ali mexia nos seus sentidos de forma agonizante.

Mergulhando novamente na Segunda Visão, tentou identificar truques ou algum tipo de magia residual que a pudesse confundir. Retornando aos olhos da carne, focou em perceber diferenças entre a realidade e a memória.

Azar não conseguiu segurar o grito agudo que lhe escapou a boca quando percebeu, num dos cantos da sala, oposto a onde ela estava sentada, faltava uma porta. Sua Segunda Visão mostrava, claramente, que naquela parede deveria haver uma grande porta de metal — desnecessariamente reforçada para o lugar onde se encontrava, tão protegida dentro da fortaleza —, mas no presente não havia nada. Sequer podiam ser vistas marcas na parede que poderiam indicar que a porta fora selada na rocha.

Magia, então, ela concluiu. A única coisa que poderia fazer com que a porta desaparecesse daquela forma era magia. Decepcionada por não ter notado aquilo antes, Azar se aproximou da parede, os sentidos voltando ao normal aos poucos, recuperando-se do choque entre passado e presente.

Para que sua mente se agitasse daquela forma, o feitiço que protegia a porta deveria ser extremamente potente, forte o suficiente para se manifestar tanto no presente quanto no passado. Mas não tinha a fortaleza sido excomungada, o que impediria qualquer magia de ser realizada ali dentro?

— A não ser que a magia já estivesse aqui quando as bruxas tomaram a fortaleza. — A bruxa murmurou para si mesma.

Analisando o espaço na parede tanto com a Segunda Visão quanto com os olhos da carne, ela se aproximou da porta e a tocou. Nada aconteceu. A parede era pedra fria, dura e impenetrável. Com uma palavra, ela tentou desfazer a magia. Inútil. Qualquer feitiço que tentasse ali dentro não teria efeito algum. O lugar simplesmente sugava a magia e a tornava inútil. Ela deu um soco na parede, irritada, e virou de costas para o objeto misterioso.

Ignorando a dor que sentia nos nós dos dedos, ela se sentou num dos cantos do salão para encarar a porta invisível, tentando imaginar o que poderia estar por trás daquela passagem. Que segredos queriam guardar ali que eram tão importantes a ponto de criar-se um feitiço tão complexo?

Minutos após se sentar ali, a bruxa sentiu o sono que vinha com a noite e o cansaço de um dia todo de caminhada. Não havia motivo para ficar quebrando a cabeça com aquele problema agora, ela percebeu. O que quer que fosse já aguardara séculos para ser descoberto e, talvez, ela sequer fosse capaz de desfazer aquela magia antiga.

Exausta, Azar conseguiu encontrar uma antecâmara atrás do palco, onde havia proteção suficiente do vento para que pudesse ter uma noite decente de sono.

Deitada na pedra fria, somente com sua mochila de suprimentos para descansar a cabeça, Azar se deixou levar para o mundo dos sonhos e longe das preocupações do mundo real.

Fura-Coração (COMPLETO - EM REVISÃO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora