I. Fúria e Sangue Ancestral

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Eralyn cutucou o corpo da bruxa com o pé, verificando se estava mesmo morta. Não respirava e, tampouco, emitia qualquer sinal de magia. Tinha sido a última das monstruosas criaturas a morrer no campo de batalha e, provavelmente, a mais difícil de matar.

— Essa aí fez uma boa luta. — Gehr, atrás dele, comentou enquanto verificava outro pequeno monte de corpos.

— Fez o melhor que essas coisas conseguem fazer. — Eralyn respondeu, a repulsa que tinha para com aqueles animais era latente em sua voz. — Quantas abateu?

A competição que os dois mantinham era saudável, os motivava a lutar em busca do maior número possível de bruxas mortas. Gehr encarou o sangue vermelho que manchava suas vestes, um pouco decepcionado, antes de responder:

— Somente dezesseis.

— Está ficando lento, amigo. — Eralyn caçoou, sorridente. — Eu parei de contar na vigésima quinta, pois já sabia que nunca chegaria perto disso.

O elfo do oitavo reino élfico, mestre na arte do ar, sentiu quando o amigo irritadiço o ameaçou sutilmente com seu fogo interior. Foi um pequeno fio de poder que pairou entre eles, uma tensão extra-sensorial que se dissipou rapidamente. Alguns dos outros soldados, que vasculhavam o exército caído das bruxas, olharam na direção dos dois, detectando o uso de magia com os próprios encantamentos, sempre prontos para reagir a qualquer ameaça.

Quando perceberam do que se tratava, voltaram a cumprir com seus deveres, cutucando os corpos e liquidando qualquer uma das derrotadas que pudessem ter sobrevivido com suas lanças e espadas de ferro branco. Eralyn fez um gesto ofensivo na direção do amigo e se virou para encarar a planície rochosa que se estendia ao sul do campo de batalha.

— Reconhece a bandeira? — Gehr perguntou, olhando para um pano amarelo largado no chão, decorado com o que parecia ser o desenho de dentes afiados de uma bruxa.

— O clã das Tormentadoras, acredito. — Eralyn respondeu. Já tinha encontrado bruxas o suficiente ao longo de sua vida para ter uma boa ideia de qual bandeira pertencia a qual dos sete clãs bruxos.

Gehr pegou a bandeira ensanguentada do chão e a prendeu em seu cinto, uma lembrança que ele guardaria daquela batalha por um bom tempo.

Eralyn caminhou mais para o sul, onde alguns gêiseres disparavam água quente para o alto, assustando alguns animais dos rebanhos que por ali pastavam, alheios à toda a confusão que acontecera há pouco no topo da colina. Cerca de oitocentas bruxas tinham enfrentado mais de mil e quinhentos elfos ao nascer do sol daquele dia. Nenhuma sobrevivera. Uma batalha que teria sido ainda mais selvagem não fosse o poder das Canções de Verão, entoadas pelos sacerdotes que acompanhavam a tropa élfica.

Eralyn lutara junto aos menos experientes, na linha de frente do combate, dilacerando aquelas criaturas tanto com o poder de sua espada quanto com seus golpes mágicos, que disparava tão automaticamente quanto andava ou corria.

Magia vencera aquela batalha, mas também a experiência e a superioridade natural dos elfos. Os mais jovens e inexperientes tinham lutado bravamente, seguindo o exemplo dos mais velhos, como Eralyn, formando uma frente una contra a bizarra formação barbárica das bruxas.

Aquelas coisas, que à distância poderiam ser confundidas com fêmeas élficas, lutavam como animais, fazendo uso das garras que tinham no lugar das unhas e dos dentes afiados como os de um tigre, das espadas longas de ferro desenhadas para perfurar a armadura prateada dos elfos. Eram adversárias formidáveis, refletiu o elfo ao voltar novamente os olhos para o campo de batalha. Uma pena que restassem tão poucas para que ele matasse.

Aquele dia se passou rapidamente, como sempre acontecia após uma batalha. A luta em si sempre durava no máximo três ou quatro horas, quando muito, mas a limpeza, os rituais e encantamentos que deveriam ser realizados após a batalha, eram a parte demorada. Recolher os corpos das bruxas e queimá-los, realizar os ritos em honra aos elfos caídos e visitar os mestres das águas para cuidar dos ferimentos de combate eram as tarefas que constituíam aquele árduo dia após um embate com o inimigo. Era muito para se fazer em um período de tempo que parecia estranhamente curto.

Eram, no entanto, os momentos dos quais Eralyn mais gostava. Sua vida imortal era, por vezes, monótona, exceto pelos dias em que acordava em meio ao sangue de seus inimigos e ia dormir sob o olhar dos deuses, vitorioso. Estivera lá quando Mirael abrira os portões de Nivellir para que os exércitos élficos dizimassem o último reino dos anões e estivera presente quando Larco e Demien iniciaram o Cântico da Longa Primavera. Passara por todas as grandes batalhas dos últimos sete mil anos e, de todas elas, saíra vitorioso.

Havia momentos em que ele gostava de imaginar que era parte de algo maior, de uma grande missão divina que visava limpar o mundo, protege-lo dos seres imundos, das crias de Bagla. Mas, sincero consigo mesmo, ele sabia que era a ação e a emoção da batalha e do derramamento de sangue que o mantinham seguindo em frente, que o livravam da monotonia da imortalidade.

Deitado na grama fresca, encarando as estrelas que começavam a aparecer, Eralyn sorriu, sentindo os cheiros das piras funerárias que levavam seus irmãos para cear ao lado dos deuses, finalmente livres dessa existência limitada. Sob o jugo dos deuses e o olhar das estrelas, o elfo dormiu como só era capaz de fazer nas noites que sucediam uma batalha: tranquila e pesadamente.

Fura-Coração (COMPLETO - EM REVISÃO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora