Alick caminhava pela mata, escutando somente os sons dos pequenos animais e do vento conforme traçava seu caminho até a área de estudos improvisada de Azar.
Se por um lado compreendia a necessidade de vencer aquela guerra por quaisquer meios possíveis, não conseguia aceitar aquele método. A magia que produzia era poderosa, isso era fato, comprovado pelos experimentos daquela tarde. Como a magia etérea, moldável e potente, mas difícil de ser controlada e utilizada.
Ainda que a Fura-Coração aprendesse a controlar aquilo, como poderia garantir que aquela energia morta não se voltaria contra ela? Por vezes, a magia parecia ter consciência própria, vontades e desejos. E se aquela também agisse assim? E se Azar perdesse o controle e causasse mais mal do que bem?
Aquelas perguntas assombravam sua mente, principalmente desde que Lyssa desaparecera do acampamento e não retornara mais. Azar tinha certeza de que a fada fugira após a briga entre as duas, incapaz de aceitar o que ela fazia. Alick não conseguia se convencer de que a pequena amiga as abandonaria por um motivo tão banal. Algo dentro dela dizia que havia algo estranho naquela história.
Ela empurrou todos aqueles pensamentos para o fundo de sua mente quando avistou Azar sentada num tronco caído com seu livro em mãos. Ela desenhava com os dedos na capa negra, uma luz clara saía de onde sua pele encontrava com o papel. Estava realizando algum tipo de feitiço no livro não com a magia negra, mas com a sua própria, a magia da luz do sol.
— Que faz? — Alick perguntou enquanto se aproximava. A outra não respondeu, escolhendo terminar seu desenho antes de dirigir sequer um olhar à Ferro-Brasil.
Eram runas que ela desenhava, percebeu Alick. Runas do alfabeto antigo, de proteção e resistência. Um feitiço realizado com a força mágica do mago, mas cuja forma vinha das palavras escritas secretamente no papel. Azar estava protegendo seu conhecimento obscuro de quem tentasse destruí-lo, percebeu.
Quando a Fura-Coração terminou de escrever, finalmente olhou em sua direção e assentiu, percebendo que a própria Alick já respondera a própria pergunta.
— A fada não voltou? — Indagou Azar, desinteressada.
— Não. E ainda acho que deveríamos procurá-la. — Alick sentou-se ao lado da outra, casualmente.
— Posso senti-la perto. Não está morta. — Foi a única coisa que a Fura-Coração respondeu. — Só deve estar precisando de um ar.
— Acho que devia ouvi-la, Azar. — Não era a primeira vez que Alick insistia naquilo.
— E por que eu o faria? — A Fura-Coração não parecia com vontade de conversar, mas pouco importava para Alick.
— Porque você a trouxe aqui para isso.
— Eu a trouxe para que me ajudasse a desvendar o feitiço da porta. Ela o fez. — Azar cuspia as palavras. Provavelmente ainda estava irritada com o que Lyssa dissera. Alick não conseguia imaginar o que se passava em sua mente, o arrependimento e o fardo de ser malvista por suas irmãs pelo resto de seus dias. Talvez aquela arma fosse, de fato, a maneira mais fácil pela qual ela conseguiria aprovação das outras bruxas. — Ela poderia estar voando de volta para a Gruta por conta própria agora. Não preciso mais dela.
"Nem de você", Alick leu as palavras não ditas.
— Deveria ouvir a opinião das fadas. Se não a de Lyssa, tente pedir ajuda a Fedra. — A Ferro-Brasil tentou argumentar. — Elas podem ver o que nós não podemos.
— Só porque é um tipo de magia diferente, não significa que seja ruim, Ferro-Brasil. Estou apenas aprendendo a reciclar a energia desperdiçada no momento da morte. Não vejo problemas nisso. — A bruxa voltou a desenhar, aquela luz voltando a sair de seus dedos conforme sua magia penetrava nas páginas. — Além do mais, nos tornará tão poderosas quanto um mago feérico, capazes de moldar nossa força da forma como quisermos!
— Acha mesmo que uma energia vinda do sacrifício de criaturas vivas pode ser boa? — Alick estava cansada de argumentar, mas sentia que aquilo devia ser feito. — Escravizar a magia de alguém que só merece a paz do sepulcro?
— Nossas ancestrais sacrificavam todo tipo de criaturas para agradar a uma Deusa que sequer ouve nossas preces e nunca tiveram problemas. — Ela parou de desenhar, fechou o livro e encarou a Ferro-Brasil nos olhos. — Não é muito diferente, se pensar.
— É completamente diferente. O sacrifício, que já não era a mais saudável das práticas, não escravizava a magia de um ser para satisfazer desejos de grandeza.
— Está mesmo disposta a desperdiçar essa chance de vencer a guerra por causa de um senso moral do qual nossos inimigos tão obviamente não compartilham? — Azar elevou o tom da voz, como se estivesse ficando irritada. — Nunca pensei que fosse uma idealista, Alick Ferro-Brasil.
— Não é idealismo, Fura-Coração. É medo! — Respondeu Alick. — Essa magia não lhe pertence, é roubada e deturpada. Não deveria ser usada. Sequer sabemos se isso não tem efeitos negativos na pessoa que a utiliza.
— Suponho que saberemos com o tempo. — O sorriso no rosto de Azar dizia que ela não se importava muito com as possíveis consequências. — Tudo que sei agora é que essa é nossa chance de conseguir uma vantagem — ela complementou após algum tempo —, de consertar tudo, e eu não irei desperdiçá-la.
Alick se calou, apenas observando enquanto a outra bruxa seguia com seus desenhos sobre o papel. Talvez ela estivesse certa, pensou. Talvez a Aliança devesse aproveitar qualquer oportunidade que a Deusa pusesse em seu cainho para derrotar o inimigo, não importando o qual errado aquilo parecesse.
Qualquer que fosse a resposta, decidiu a Ferro-Brasil, não caberia a ela, e sim à Matriarca e às Rainhas, que ponderariam sobre aquela magia estranha.
— Não consegue rastrear Lyssa? — Perguntou, decidindo mudar de assunto. Azar pareceu frustrada com aquela interrupção ao seu trabalho.
— Acha que já não tentei? — A Fura-Coração respondeu. — Ela está além de meu alcance. Provavelmente não quer ser encontrada.
— Ou foi capturada e não consegue retornar.
— Saberemos se ela não aparecer pela manhã. — Apesar das feições desinteressadas, havia certa preocupação na voz da bruxa. — Ela está irritada, precisa respirar um pouco. Deixe que o faça.
Alick engoliu sua preocupação no momento em que um grito ecoou pela floresta. Era masculino, vinha do acampamento.
— Merda. — Exclamou antes de sair correndo na direção de Eralyn e do prisioneiro com Azar logo atrás.
Encontraram o elfo desacordado, com a cabeça sangrando, mais um ferimento somado aos vários estampados em seu corpo. Ele recusara ajuda, provavelmente com medo de que as bruxas fossem feri-lo ao invés de curar, mas agora não tinha escolha. Enquanto Azar se ajoelhava ao seu lado e começava a aplicar um curativo, tentando estancar o sangramento, Alick correu pela mata à procura do fugitivo.
Não havia sinal do maldito. Nenhum barulho de pés batendo contra a pedra, nenhum cheiro que ela pudesse captar. Ele escondera seus rastros, provavelmente usando magia. Era esperto, experiente. Não havia nada que a Ferro-Brasil pudesse fazer além de rezar para que ele não retornasse com mais soldados.
"Se o elfo encontrasse Lyssa..."
Alick não se deixou terminar aquele pensamento. Tinha que acreditar que a fada seguira na direção da Floresta, não na oposta. Tinha que ter fé de que logo a encontraria e elas conseguiriam seguir seu rumo tranquilamente até a Gruta. Restava-lhe apenas rezar, e isso a frustrava profundamente. A impotência era mais afiada que uma faca.
— Que confusão é essa? — Ela perguntou para si mesma enquanto caminhava até Azar e Eralyn.
— O que aconteceu? — A Fura-Coração perguntava ao elfo semi-consciente. Ele balançava a cabeça, como se tentasse espantar moscas invisíveis que o incomodavam.
— Gehr... — Murmurou o elfo. — E-ele me atacou.
— Achei que tivesse prendido o maldito, Azar. — Alick interveio. Se a Fura-Coração tivesse sido displicente com sua magia, a culpa do risco que o grupo agora corria recaía sobre ela.
— Eu prendi. — Respondeu, irritada. — Ele deve ter usado algum contra-feitiço que eu desconheço.
"Ou teve ajuda", refletiu a Ferro-Brasil, mas decidiu guardar aquilo para si. Se Eralyn era um espião inimigo, era melhor pegá-lo em flagrante do que jogar acusações. Se ele fosse inocente, teria tempo para provar-se assim, ainda que fosse mais fácil abatê-lo enquanto estava ferido e cambaleante.
Azar esticou o braço na direção de uma pedra caída ao lado do elfo. Sob a luz da lua, Alick pôde ver que havia sangue na superfície. A arma usada para nocautear Eralyn.
— Eu dormi por um minuto. — Resmungou ele novamente. — Acordei com um movimento repentino, mas quando percebi o que estava acontecendo, já era tarde demais.
— Bem, isso aqui vai deixar uma marca. — Azar ignorou as palavras. — Descanse e tente não se mover muito. Não sou curandeira, mas isso aqui deve manter sua cabeça funcionando por mais alguns dias.
A Fura-Coração falava enquanto ajeitava a atadura que agora envolvia o topo da cabeça do elfo. Quando ela fez o movimento para se levantar, ele segurou seu braço com firmeza. Assustada, Azar o encarou com o punho livre fechado, pronta para deferir um golpe.
— Obrigado, bruxa. — Ele falou, simplesmente, soltando sua mão em seguida.
Revirando os olhos, Alick foi até o outro lado da fogueira, onde se sentou silenciosamente.
— Durma primeiro. — Ela falou para Azar após alguns minutos. — Gastou energia com aquele livro. Deixe que eu guarde o acampamento por enquanto.
A bruxa não falou, apenas assentiu com a cabeça e se deitou sobre um monte de folhas que ajeitara para formar uma cama improvisada. Assim que repousou a cabeça, Azar parecia ter adormecido, deixando Alick e Eralyn sozinhos, o último ainda com a mão na cabeça, tentando encontrar uma posição confortável para dormir.
Muito tempo se passou até que a Alick Ferro-Brasil fosse deixada sozinha com seus pensamentos à frente do fogo. Ela não acordou Azar para seu turno, decidida a deixar que a companheira descansasse, com esperanças de que Lyssa retornasse durante aquela noite.
A fada, no entanto, não retornou. Sozinha, a bruxa deixou que sua mente passeasse por todos os assuntos que a afligiam conforme a lua caminhava pelo céu e o fogo à sua frente se transformasse numa fraca brasa que consumia a madeira.