— O que foi isso? — O Midgeller bufou, batendo com os cascos no chão e olhando ao redor.
O som estranho vindo das montanhas ao redor fez com que a própria Dalária tremesse, tomada por uma apreensão repentina. O feérico, que mordiscava uma fruta numa pose confortável e relaxada, estava em pé em poucos segundos com uma espada em suas mãos.
A Rainha, sem se mover, escutou os sussurros que ecoavam pelas rochas frias e parcamente iluminadas pelas tochas e luzes mágicas que tornavam o acampamento um misto sinistro de chamas bruxuleantes e escuridão profunda causada pela noite sem luar. Nuvens encobriam as estrelas, não fosse a iluminação artificial, ela não conseguiria enxergar um palmo além de sua face.
Os sussurros eram estranhos, quase como que gritos que tentavam escapar por gargantas machucadas, como se estivessem gritando sem cessar por anos e só lhes restassem aqueles sons falhos e fracos. Dalária sorriu, vendo o medo no olhar do tão ameaçador Midgeller.
— Então é verdade que as montanhas são amaldiçoadas. — Quem falou foi outro dos touros, que carregava consigo uma grande maça cuja cabeça provavelmente seria capaz de destruir um escudo sem muito esforço. Os outros ao seu redor murmuraram em concordância. O feérico se manteve silencioso, atento.
Não fossem as cordas que lhe amarravam, tornando cada movimento difícil, Dalária estaria rindo frente ao medo que aqueles brutos estampavam em suas faces. Não tinham medo de atropelar uma tropa de elfos bem treinados, mas temiam lendas sobre maldições e superstições bobas? Um grunhido divertido escapou de seus lábios, atraindo atenção dos inimigos.
— Está rindo de quê, vadia? — Dok esbravejou, ainda balançando sua espada para os sussurros invisíveis. Limenn parecia pronto para intervir e impedi-lo de fazer alguma besteira. O touro bufou novamente, batendo os cascos como se estivesse se preparando para investir contra algo.
— Essas montanhas não são amaldiçoadas, touro. — Ela falou, finalmente. — Muito menos assombradas por fantasmas de anões, como contam algumas histórias.
A atenção de todos — o feérico e cinco Middgellers — agora estava sobre ela. Com os lábios apertados, ela sorriu levemente. Após alguns segundos de pausa, continuou:
— Não, o que existe aqui é muito mais antigo e misterioso. — Outra pausa. Os touros bufavam como loucos, preparando-se para combater a ameaça invisível. — Inofensivo, no entanto.
Não era mentira. Muitas vezes ela viajara até aquelas montanhas com comitivas reais e grupos de caça, sempre interessada em descobrir um pouco mais sobre as criaturas que ali viviam. Por milênios, eles foram os inquilinos indesejados daquela região do reino, mas nunca fizeram mal algum para elfos ou qualquer outra criatura que por ali andara.
— Sabe o que são? — Limenn perguntou, aproximando-se da Rainha.
— Ninguém sabe exatamente. Os anões não sabiam, as bruxas tampouco. Quando chegamos aqui, essas coisas já estavam aqui. — Tudo que Dalária dizia era verdade, mas ela duvidava que seus sequestradores acreditariam. — Alguns acreditam que são uma espécie de Primordial, os acadêmicos consideram que são seres etéreos, sem corpo físico, que se alimentam da própria magia e não interagem com nosso mundo. — O olhar que o feérico lhe dirigia era de curiosidade, não suspeita. — Ninguém sabe com certeza, no entanto.
— E por que deveríamos acreditar na vadia? — Outro dos Middgellers falou, apontando uma espada em sua direção. A Rainha revirou os olhos, irritada, sentindo sua magia agitar-se. Infelizmente, aquilo não seria de grande ajuda. Não sem saber a extensão das habilidades de Limenn.
— Qual motivo tenho para mentir? — Ela perguntou, esforçando-se para ficar em pé. — Se essas coisas fossem perigosas, minha melhor chance seria que vocês os derrotassem. Ter vocês mortos com minhas mãos ainda amarradas às costas não é algo que eu deseje. Ainda.
O touro bufou e se aproximou, preparando-se para violência, como era normal para aquele tipo. Era incrível como suas capacidades intelectuais eram limitadas, pensou Dalária. Inimigos formidáveis por sua força, sim, mas contra um inimigo preparado eram apenas brutamontes estúpidos.
— Talvez devesse mandar um batedor para olhar à frente, Dok. — Sugeriu o feérico, colocando-se entre a elfa e os touros, protegendo sua perspectiva de ganhos futuros. — Se houver algo, eles encontrarão e poderão avisar-nos.
O rosto bruto e peludo do Middgeller analisou os arredores da fogueira por alguns instantes antes de indicar com o queixo três de seus quatro companheiros. Estes, imediatamente, partiram pela abertura das rocas à frente e desapareceram nas sombras, carregando consigo algumas tochas. O quarto touro foi para a direção oposta, onde o restante daquelas criaturas ainda estava reunida. Novamente Dalária ficou sozinha com Dok e Limenn.
— Acha mesmo que eles existem? — O feérico perguntou, indicando à Rainha que se sentasse próxima à fogueira. Ela o fez. — Os Primordiais?
— Olhe, garoto, eu já vi coisas estranhas o suficiente nestes milênios para acreditar. — Ela respondeu. — Pelas planícies de Terralarga e mais além, nas estepes ocidentais, vagam criaturas extremamente poderosas e estranhas cuja existência só pode ser confirmada por quem já as viu. As lendas a respeito dos Primordiais são claras.
— Criaturas mais antigas que os anões, que vagam pelo mundo alimentando-se das criaturas mais jovens. — Limmen completou o pensamento. — Sim, eu conheço as histórias. No entanto, você diz que estes não são violentos?
— Essas coisas nunca foram vistas, apenas ouvidas. — Disse a Rainha. — Não há qualquer indício de uma sociedade. Se houvesse algo embaixo da terra, os anões saberiam. — Ela engoliu em seco, e indicou com o queixo o cantil que o feérico sempre carregava consigo. Ele virou um pouco do líquido em sua garganta. — Estão aqui há mais tempo do que os livros conseguem contar. Então, sim, eu acho que são Primordiais. Algum tipo inofensivo e estranho de primordial, pelo menos.
Limmen mexeu nos cabelos, tirando alguns fios rebeldes da frente dos olhos, antes de encarar os arredores, escutando mais uma vez os sussurros que variavam constantemente de intensidade e volume. Eram, de fato, estranhos e assustadores. Mas Dalária já convivera muito com aquelas criaturas nas viagens que fizera com seu pai.
— Espero conseguir dormir com esse maldito barulho. — Dok falou para Limmen, ignorando como sempre a presença da elfa.
— Você acaba se acostumando. — Respondeu, entediada.
O touro grunhiu e bufou para, então, trotar na direção de seus colegas, provavelmente ansiando por distância de Dalária. A criatura desapareceu após uma curvatura da pedra e, pouco depois, o som de seus cascos contra o chão deixou de ser ouvido. A Rainha estava, novamente, sozinha com o feérico.
— A forma como fala deles... — começou Limmen — faz parecer que já esteve aqui antes.
— Mais vezes do que me dei ao trabalho de contar. — Respondeu, olhando em seus olhos. — Há outro caminho pelas montanhas, mais seguro e aquecido que este. Leva até um pequeno vilarejo escondido numa baía. Na verdade, ele marca o limite sul de meu reino. — Ela riu, achando engraçado que aquele tipo de coisa viesse à sua mente naquele momento. — Meu pai adorava ir até lá ao menos uma vez a cada cinco anos. Passávamos alguns meses tranquilos, longe da política e da guerra.
Limmen escutava aquilo com interesse inesperado. O feérico espreguiçou-se e apoiou seu corpo contra uma pedra, com as mãos atrás da cabeça para servir de apoio. Diretamente de frente para a Rainha, ele sorriu de maneira que parecia melancólica. Suspirando, ele disse:
— Às vezes esqueço que vocês também levam vidas normais. — Dalária demorou alguns segundos para compreender de que ele falava. — É fácil achar que vivem em seus palácios afiando espadas e chicoteando escravos.
— Na verdade, a maior parte do tempo é passada planejando como vamos matar uns aos outros, não aos selvagens. — Ela brincou.
De fato, era estranho pensar que aquele inimigo tão antigo não era um gado sendo engordado para o abate, mas sim uma criatura racional e sociável. Eram criaturas que tinham impérios e lutas próprias muito antes que os elfos chegassem àquele continente. Os acadêmicos e sacerdotes diziam que aquilo era parte da provação dos deuses, que fazê-los tão parecidos com os elfos fora um truque de Bagla para tentar os Filhos dos Deuses a não matá-los, mas...
— Sabe, não é legal ser chamado de selvagem. — Limmen respondeu à provocação. — É ofensivo.
— É um velho hábito. — Respondeu Dalária e ambos riram. — Pode me dar um pedaço de carne? Estou morrendo de fome.
— É claro, Majestade. — O feérico fez uma reverência debochada e exagerada antes de buscar numa sacola os remanescentes das rações que carregava consigo. — Não quero que minha carga morra, não é mesmo? Ainda pode valer mais viva do que morta.
— Se assim quiserem os deuses. — Ela aceitou o pedaço de carne, dando uma mordida voraz e enfiando tudo que conseguiu na boca. Estava, de fato, faminta. Era humilhante e patético ser alimentada pela mão de um feérico, visto que as suas ainda estavam atadas às costas, mas era definitivamente melhor do que sentir o estômago vazio.
— Acha que existe alguma chance de paz? — Limmen perguntou, repentinamente.
A Rainha de Parsos apenas encarou o selvagem, tentando levar em consideração tudo que vira em seus milênios de existência. Ele era jovem e esperançoso, ela não. Seus pensamentos viajaram até os dragões e seus Mestres, até Valatr que sempre tentara convencê-la a lutar pela paz. Ele também era jovem, pensou, propenso às mesmas insanidades que Limmen. Ele e praticamente todos os seus companheiros da Cavalaria.
— Fomos ensinados desde pequenos que esta guerra é um dever sagrado, que os deuses nos enviaram a essas terras, os Treze Reis, para espelhar o que foi construído além do Mar de Tempestades, para livrar o mundo de impurezas. — Novamente, o feérico ficava estranhamente quieto enquanto ela falava, aguardando por cada palavra como se fosse algum entretenimento pelo qual ele ansiava.
— Quantos anos tem, Dalária? — Ele perguntou.
— Pouco mais de sete mil. — Respondeu a Rainha. O feérico riu.
— E em todo esse tempo, nunca questionou este "dever sagrado"? — Esta última parte ele disse com uma voz recheada de sarcasmo.
— Questionar é trair os deuses, garoto. — Ela falou. — Perguntar a algum sacerdote sobre a legitimidade desse conflito é pedir para ser enforcado. Até mesmo uma rainha pode sofrer este destino. Não se esqueça de que somos treze reis, todos comprometidos com este objetivo. — Dalária fez uma pausa, durante a qual Limmen não falou. — De certa forma, acho que todos nós questionamos. Mas decidimos seguir em frente porque é isso que sempre foi feito, é isso que deve continuar sendo feito. Como um pêndulo que se manterá balançando, não importa o quanto tempo passe.
— Nunca vi utilidade nessa merda toda. — A voz do jovem feérico era cheia de raiva, uma espécie de arrependimento rodeava suas palavras. — Fazem-nos acreditar que os elfos devem pagar por terem destruído os anões, somos treinados desde o útero para lutar uma guerra que determina quem somos.
Ele parou de falar, como se considerasse suas próximas palavras com cuidado. Dalária, por sua vez, não tinha nada a dizer. Aquelas palavras, toda aquela conversa, a tinham deixado sem reação. Ela esperava que aquele silêncio não fosse um estado permanente de sua consciência.
— Eu só queria que as coisas fossem diferentes. — Completou o rapaz, olhando nos olhos azuis da rainha com intensidade. Uma lágrima ameaçava brotar do castanho dos seus. Ele engoliu em seco.
Sem saber exatamente como responder àquele discurso, Dalária pôs um sorriso travesso no rosto antes de encará-lo novamente.
— Sabe que eu ainda vou matar todos vocês assim que conseguir sair dessas amarras, não? — Falou ameaçadora, mas brincalhona ao mesmo tempo. Já não sabia se cumpriria aquela ameaça com prontidão.
— Eu gostaria de vê-la tentar. — O feérico levantou-se, lançando uma piscadela para a Rainha e partindo para o outro lado da fogueira para procurar algo em sua mochila, deixando-a sozinha com os sussurros incessantes dos fantasmas da montanha.