No momento em que Azar passou pelo portal e olhou para trás, o que era esperado aconteceu.
Lyssa, que estava branca como a neve, todo o sangue sugado para fora de seu rosto pelo medo, deu um passo para dentro da fortaleza e recuou imediatamente, ajoelhando-se no chão e colocando para fora todo o conteúdo de seu estômago.
Revirando os olhos, a bruxa Fura-Coração encarou Alick, que tentava por a fada novamente em pé. Nenhuma delas disse qualquer coisa, era óbvia o suficiente a motivação daquele mal estar. Ela só podia rezar à Deusa para que aquilo não atrapalhasse a tarefa que tinham que cumprir ali.
— Você vai sobreviver. — Ela grunhiu, tentando voltar a atenção das duas ao que realmente importava. A Ferro-Brasil a encarou como se pedisse tempo, ela concedeu.
Alguns minutos se passaram antes que Lyssa finalmente controlasse seu estômago o suficiente para conseguir dar cinco passos sem vomitar. Quando isso aconteceu, elas caminharam por entre as pedras antigas, percorrendo o mesmo caminho que Azar percorrera não tanto tempo atrás.
— É lindo. — Murmurou Alick, olhando para os arcos ogivais que delineavam a entrada da fortaleza. Além deles, corredores e antessalas levavam ao salão onde aquela estranha porta se encontrava.
Quando entraram no grande espaço aberto cuja única decoração era o gigantesco carvalho em seu coração, Azar fechou os olhos e, quando os abriu novamente, encarou o passado do ducado. Era tão grandioso sob a luz do sol quanto fora sob a luz do luar. Não haviam dançarinos, não havia baile, mas a magia ainda estava ali. Aquela porta ainda estava ali.
Ela retornou ao tempo presente e encarou as duas companheiras, que se aproximavam da árvore. Lyssa, que ainda tremia levemente, ao menos conseguia caminhar sem o auxílio da Ferro-Brasil
— Como isso é possível? — A fada perguntou, olhando para as duas bruxas. Azar ergueu as sobrancelhas, uma pergunta silenciosa. — A árvore. Como que ela está aqui se não há magia para conceder-lhe vida?
— Talvez tenha crescido antes da excomungação. — Arriscou Alick. A Fura-Coração quis dar de ombros, mas resistiu.
— O ritual foi realizado assim que a fortaleza foi tomada. É impossível que a árvore já estivesse aqui. — Falou, por fim.
— Era isso que queria estudar? — Lyssa perguntou, aproximando-se ainda mais das raízes que mergulhavam na terra pelas rachaduras no chão de pedra.
— Não. — Ela respondeu, ainda que estivesse levemente intrigada pela existência da árvore a partir da observação da fada. — Venha cá.
A jovem obedeceu, lançando um último olhar curioso ao carvalho. Ela parou ao lado de Azar, que apontou na direção de onde sua Segunda Visão acusava a existência da porta. Antes mesmo que a bruxa dissesse algo, a expressão no rosto de Lyssa se modificou, passando de curiosidade para o que parecia ser surpresa.
— O que vê ali? — Perguntou a Fura-Coração. A outra balançou a cabeça.
— Existe um feitiço ali. — Respondeu. — É como se a magia estivesse acorrentada pela energia morta que ocupa esse lugar. — A fada fez uma pausa, aproximando-se da porta para analisar melhor. Apesar de não haver qualquer indício físico de sua localização, Lyssa foi diretamente ao lugar certo. — Não consigo entender este feitiço.
— Deve ser alguma camuflagem. — Comentou Alick, Azar concordou com a cabeça. — Colocado aí para proteger o que quer seja.
— É uma porta. — Explicou a Fura-Coração, lembrando-se de que a outra bruxa não conseguia ver o que ela via.
— Estamos aqui para visitar o quarto escondido de uma fortaleza antiga? — A Ferro-Brasil parecia inconformada.
— O que quer que esteja escondido aí é importante o suficiente para ser enfiado debaixo de um feitiço poderoso. — A própria Azar não entendia por que seus instintos gritavam para que abrisse aquela porta, mas sentia que poderia ser algo importante. — Acho que vale o esforço.
Alick não pareceu disposta a discutir, apenas cruzou os braços e encarou enquanto as duas examinavam a porta — Azar com sua Segunda Visão e Lyssa com as habilidades das fadas.
— Como vamos abrir, no entanto? — A fada perguntou após alguns minutos.
— Bem, eu não consegui abrir esta porta por conta da excomungação. — Azar respondeu. — Acha que consegue inibir os efeitos do feitiço por tempo suficiente para que eu acesse o feitiço por baixo?
Lyssa pareceu refletir sobre aquilo, olhando para as próprias mãos e, então, para a porta. Havia um pouco de medo na expressão dela quando engoliu em seco e fez que sim com a cabeça.
— Há algo que eu possa fazer? — Alick perguntou, tentando se fazer útil.
— Acho que não. — A Ferro-Brasil torceu o nariz frente àquela resposta e foi sentar-se sobre a raiz da árvore. Azar completou, virando-se para Lyssa: — Pronta? — A fada fez que sim e uma chama surgiu na palma de sua mão, serpenteando por entre seus dedos.
Atrás delas, os passos de Alick ecoaram pelo salão conforme a bruxa saía dali, provavelmente temendo que a pequena perdesse o controle. Revirando os olhos, a Fura-Coração voltou sua atenção à porta, afastando-se alguns passos de Lyssa.
— Agora. — Falou, e reuniu sua magia, focando no objetivo.
Com o canto dos olhos, Azar viu a pequena chama que dançava na mão da fada se transformar numa labareda que rodeou seu corpo. Como ela conseguia fazer aquilo, ascender aquela chama sob o peso do feitiço antigo? "Bem, talvez eu entenda menos de magia do que imaginava", pensou a bruxa.
Os olhos de Lyssa eram tão incandescentes quanto seu corpo, o esforço que a fada fazia para manter sua magia viva era visível através de sua expressão. Ela não estava desviando da excomungação, mas sim lutando contra a mesma. Um gemido escapou de seus lábios no momento em que as chamas atacaram a parede lisa.
— Agora! — A pequena gritou, as asas batendo forte às suas costas. Sem pensar duas vezes, Azar lançou sua própria magia, tentando atingir a camuflagem.
Como seu punho quando ela socara aquela mesma parede, seu poder encontrou a barreira mágica. Não era a "energia morta" — como Lyssa chamara —, mas sim uma magia de camuflagem forte e bem trabalhada. Levaria mais tempo do que a bruxa previra.
Repentinamente, a fada ao seu lado se sobressaltou e interrompeu seu ataque, cortando a ligação de Azar com a porta imediatamente. A pequena caiu de joelhos, encarando o chão, enquanto a bruxa se aproximava determinada a dar-lhe um murro no nariz. Lyssa, no entanto, ergueu uma mão.
— Você não ia conseguir. — Ela falou. — O feitiço está atrelado a outra coisa. Gastaríamos todas as nossas energias e não faríamos nenhum arranhão nesse feitiço. — A fada fez uma pausa, olhando para o carvalho gigantesco. Alick entrou no salão, exigindo uma explicação com seu olhar. Azar esticou uma mão, pedindo que esperasse. — Além do mais, eu quase perdi o controle.
— Exaustão? — A Ferro-Brasil perguntou, finalmente. Azar duvidava que a fada teria exaurido seus poderes tão rapidamente.
— Não. — Lyssa respondeu. — Nem perto disso. Eu só... mergulhei fundo demais. — Qualquer que fosse o significado daquilo, a Fura-Coração decidiu não perguntar.
Após uma longa pausa, durante a qual Azar encarou o salão com sua Segunda Visão, tentando entender a que a fada se referia, esta voltou a falar.
— Consegue ver a árvore com seu poder? — Perguntou e foi respondida com um aceno negativo. — Há alguma planta no salão? — Ela olhou novamente e viu um conjunto de pequenas plantas que pareciam constituir um jardim de inverno.
— Sim. Bem ali. — Apontou para o lugar, perto de onde agora ficava a árvore. A fada acenou com a cabeça, como se alguma peça tivesse se encaixado.
— Acho que o feitiço está atrelado à energia vital da árvore. — Lyssa comentou. — Quando a anterior morreu, deve ter encontrado o carvalho. Deve ser o que alimenta a árvore, como se um dependesse do outro.
— Uma simbiose. — Alick falou, saindo de seu silêncio contemplativo.
— O elo tem que ser cortado. — A fada já se aproximava da árvore.
— Como sabe disso? — Foi a vez de Azar interrogar.
— Bem, é o que faz sentido. — Lyssa respondeu. — Alguém me disse um dia para seguir meus instintos. — Ela olhou para Alick, que riu baixo em resposta. — Por mais que doa, você tem que queimar. — Essa última parte foi dirigida à árvore. — Acho melhor vocês saírem.
Azar e a outra bruxa obedeceram, sem querer arriscar uma morte quente e dolorosa. Do lado de fora, a única coisa que puderam ver foi quando os galhos mais altos do carvalho começaram a pegar fogo e a fumaça ascendeu ao céu como uma coluna negra. "Espero que isso não chame atenção de ninguém", pensou a Fura-Coração.
Vários minutos se passaram antes que Lyssa gritasse seu nome, sinalizando que era seguro entrar novamente. Não havia mais fogo e o carvalho estava reduzido a cinzas sobre as quais a fada caminhava, um olhar triste em sua face. Azar não queria imaginar o que se passava em sua mente naquele momento. Fadas eram protetoras da natureza, não destruidoras, afinal.
Ninguém falou nada conforme as duas assumiam suas posições novamente e aquele estranho ritual foi retomado. Desta vez, Lyssa ergueu o véu da excomungação por tempo suficiente para que Azar entrasse e tateasse pelo feitiço, sentindo os nós e as reentrâncias que o constituíam. Era complexo, mas não era impossível de ser rompido.
Nascida com habilidade nata na manipulação da luz — daí sua habilidade com camuflagem —, a Fura-Coração desfez os nós e rompeu as correntes com agilidade, movendo-se por toda a extensão do feitiço o mais rápido que conseguia. Sabia que cada minuto tornava a fada mais próxima de uma exaustão e, se o contato fosse rompido, não conseguiriam retomar antes que ela estivesse completamente recuperada.
Azar não sabia quanto tempo passara ali, desatando os nós invisíveis, mas no momento em que sentiu uma abertura — como se tivesse finalmente encaixado uma chave numa fechadura —, ela enviou todas as suas forças para este ponto, expandindo e esticando e forçando a proteção até o ponto de rompimento. Com um estrondo, o feitiço se rompeu e a bruxa Fura-Coração caiu no chão, perdendo a consciência.