De cima do lombo do belíssimo corcel branco, Dalária encarou o pátio de alabastro na entrada norte do Palácio de Parsos, onde a comitiva real se preparava para partir rumo ao templo de Nivellir. Eram vinte e três elfos, vinte e oito cavalos - todos negros, exceto pelo branco da rainha. Soldados, encarregados de proteger os viajantes, membros da corte ansiosos por conselhos e preces dos sacerdotes, além de aristocratas curiosos que aguardavam por uma chance de visitar o templo, construídos sobre a antiga cidade anã.
O animal montado pela rainha estava inquieto, bufava e batia as patas contra o calçamento, tentando livrar-se do peso que carregava nas costas. Dalária tentou acalmá-lo, acariciando os longos pelos de seu pescoço. O animal bufou, insatisfeito, mas ao menos parou com a agitação dos pés ao sentir o toque.
Não era infundada a ansiedade do corcel. Estavam ali há quase trinta minutos, esperando que as provisões fossem carregadas nos cavalos e que os inúteis da corte se sentissem confortáveis o suficiente para seguir viagem. Todos os guardas já tinham se postado ao redor da comitiva, posicionando-se de forma a manter a rainha segura, no centro de tudo. Os estandartes que carregavam estampavam o sol dourado sobre o fundo verde-oliva, cores de viajantes, não de soldados ou comitivas reais.
Vélis aproximou sua montaria da rainha, fazendo uma reverência discreta com a cabeça e encarando o horizonte com os olhos fundos.
- Permite-me uma pergunta, minha rainha? - Ele perguntou, ignorando a presença dos elfos ao redor.
- Faça-a. - Respondeu a soberana, simplesmente.
- Por que a necessidade repentina de aconselhar-se com os sacerdotes de Nivellir? - Vélis não a olhava diretamente, mantinha o rosto magro voltado para o vale ao norte. - Há mestres da fé aqui, cuja função é exatamente atender a ti.
- Sabe muito bem a razão pela qual busco conselho dos deuses, Vélis. - Passando a mão pelo lombo do animal agitado, ela o encarou, os olhos azuis enérgicos impondo sua força sobre o conselheiro. - os sacerdotes daqui são políticos, não mestres da fé. Importam-se mais com a manutenção de seu poder e influência que em ouvir as vozes dos deuses. Em Nivellir, vivem isolados e alheios às intrigas dos reinos, sequer têm uma posição a ser garantida através do jogo político.
Vélis assentiu, abaixando o rosto como se estivesse decepcionado. Ele voltou sua atenção para o cavalo que montava. Parecia ter compreendido as palavras da rainha, ainda que não concordasse com elas, então Dalária decidiu deixá-lo de lado com seus próprios pensamentos.
O sol começava a aquecer a armadura cerimonial prateada que ela usava, incomodando sua pele e o cavalo, que relinchou ansiosamente. Irritada, Dalária se aproximou de um dos capitães da gurda, chamado sua atenção com um aceno da mão direita. O elfo conversava animadamente com um dos soldados ao seu lado sobre algo que a rainha não conseguiu identificar, mas parou assim que notou sua presença ali.
- Coloque-nos em movimento. - Ela falou quando obteve sua total atenção. - Basta de ficarmos parados debaixo do sol.
- Mas, minha rainha, os nobres ainda não estão prontos para viajar. - Respondeu, hesitante, o macho.
- Que compensem o atraso com um ritmo acelerado. Basta de esperarmos que movam seus traseiros almofadados. - Alguns dos soldados ao redor ousaram rir daquelas palavras, e Dalária esboçou um sorriso junto a eles.
O capitão finalmente assentiu com a cabeça e virou-se para gritar na direção dos demais viajantes:
- Hora de se mover, rapazes! - Em resposta, alguém fez soar uma corneta, dando a ordem para a marcha.
Aos poucos, o grupo começou a traçar o longo trajeto rumo ao norte, à antiga fortaleza dos anões.
***
As horas se passavam e Dalária seguia junto à comitiva, silenciosamente, encarando o horizonte e esperando que surgisse, dentre as colinas do vale, os resquícios da antiga estrada que ligava as cidades do sul ao templo erigido sobre as ruínas da fortaleza, a estrada que a levaria aos sacerdotes e, esperava a rainha, a respostas.
- Perdemos tempo demais nos preparando. - Um dos guardas comentava à sua frente, falando com o colega. - Vamos chegar à estrada no final da tarde.
Era normal que aqueles elfos reclamassem, ela sabia. Muitas vezes, quando se está entediado, a melhor coisa a fazer é reclamar. Do clima, da vida difícil, do próprio tédio, qualquer um poderia ser o motivo. O interlocutor daquele que falara o respondeu com um simples grunhido, como se o assunto o entediasse ainda mais do que o verde da grama ao redor. Cabisbaixo, o primeiro voltou a encarar o caminho à frente.
- Quando eu era mais jovem, - falou outro, à direita da rainha - nosso capitão fazia com que cantássemos durante a marcha para acabar com o tédio.
- Faça-nos o favor, então, Malock! - Alguém gritou detrás. - Agracie estes pobres elfos com sua maravilhosa voz.
Todos riram e, até mesmo Dalária se viu esboçando um sorriso. Não era um ambiente desagradável aquele. Ela conhecia bem a vida de soldado, a vida das marchas longas e das batalhas, dos tempos em que lutara sob seu pai contra os inimigos da coroa.
Malock não cantou, no entanto. Talvez por vergonha, talvez por medo de ser repreendido por seus superiores, o elfo se calou e encarou a paisagem ao redor. Quando parecia prestes a dizer algo, alguns segundos depois, foi interrompido pela voz de Vélis, que cavalgava dois metros atrás da rainha.
- Em meu tempo, soldados que tanto falam seriam logo postos para cumprir punições no próximo acampamento. Talvez limpar os excrementos, ou algo assim. - Ele disse, rindo consigo mesmo. Os guardas viraram os rostos para frente, tomando aquilo como uma reprimenda.
- Meu pai fazia-nos cantar canções de guerra. - Dalária falou, finalmente. Os rápidos olhares que recebeu dos elfos surpresos eram esperados. Era a primeira vez que se pronunciava desde que tinham saído do pátio do Palácio. - Achava ele que isso nos motivava. Era um entusiasta do barulho.
- Lembro-me disso, majestade. - Vélis respondeu, sério demais. - Com todo o respeito, eu preferia os métodos do General Goleen. O simples som das sandálias batendo contra o chão podia irritá-lo. Era uma tropa silenciosa e eficiente. Uma faca sutil, eu diria.
- Tão eficiente que perdeu para os anões em Tiratus e precisou ser resgatado pelo Rei contra aquele exército. - Ironizou a rainha. Os soldados riram ao redor, não escondendo a satisfação de ver Vélis ser contrariado pela própria soberana. - As canções servem seu propósito, meu fiel conselheiro. Deve respeitá-las tanto quanto devemos respeitar o silêncio antes de uma batalha.
Uma leve reprimenda para Vélis, um pouco de descontração para os elfos ao redor. Dalária sorriu para si mesma ao notar a ausência de resposta do colega. Raramente aquele ali escolhia o silêncio como saída para algo. Talvez se sentisse pouco à vontade na frente dos subalternos, talvez realmente não tivesse uma boa resposta para dar. O que quer que fosse, tinha servido ao propósito de mantê-lo de boca fechada.
- Malock, - ela falou, esquecendo-se da presença inútil do conselheiro - se souber boas canções de marcha, agracie-nos com tais.
- Agradeço o pedido, minha senhora. - O jovem elfo respondeu, olhando para o cavalo dela. Nunca para Dalária diretamente. Não para os olhos, não para o corpo. "Não era assim antes", ela pensou. - Mas além de não conhecer canções à altura de vossa alteza, minha voz seria um verdadeiro crime contra seus ouvidos.
Todos riram do excesso de elogios, fazendo com que Malock tornasse a olhar para o pescoço de sua montaria, envergonhado. Sorridentes, os demais se mantiveram alternantes entre momentos de conversa e de silêncio absoluto conforme as colinas do vale de Parsos iam e vinham, a Estrada do Norte serpenteando entre as massas de terra, traçando seu caminho rumo ao que um dia fora território anão.
Quando finalmente decidiram parar para acampar, para passar a noite à beira da estrada conforme havia sido planejado, Dalária não hesitou em descer de seu cavalo e, entregando a rédea para um de seus criados, pôs-se a retirar aquela irritante armadura cerimonial, que só fazia dificultar seus movimentos e aquecer demais seu corpo. Já sem a vestimenta prateada, ela deixou que seus cabelos caíssem num rabo de cavalo às costas e, vestida com uma roupa de linho fresca e maleável, aproximou-se de um grupo de soldados que compartilhava uma fogueira à frente de onde fora montada sua barraca.
Eram aqueles que tinham cavalgado ao seu redor, protegendo-a. Mal sabia o nome daqueles elfos, mas sentia uma enorme necessidade, naquele momento, de sentir novamente a adrenalina e a fraternidade daqueles momentos que passara nos acampamentos, junto aos mais simples e destemidos.
A Rainha de Parsos se aproximou do grupo e, pegando uma espada que estava largada no chão, apontou para o capitão.
- Eu, você. Sem magia. - Os elfos a encararam, sem entender, por alguns segundos, até que um deles gritou:
- Vamos, capitão! Hora de apanhar de sua Majestade. - Todos riram, menos o capitão, que se levantou confuso, pegando também uma espada e se postando à frente de Dalária.
- Não acho que seja uma boa ideia, minha rainha. - Ele parecia com medo, percebeu ela. Medo de machucá-la e acabar sendo punido.
- Não precisa se preocupar. - Ela assegurou. - Não se esqueça que já lutei ao lado de vocês no passado. - Estava, de fato, acostumada àquele tipo de situação. Muito mais agradável que as intrigas da corte, definitivamente. - Qual seu nome, meu bom capitão?
- Óllis, minha rainha. - O elfo respondeu. Ele se postava defensivamente, esperando que a rainha tomasse uma atitude.
"Que seja", pensou Dalária, quando avançou contra Óllis com velocidade e agilidade inesperadas. Rapidamente, ela mostrou ao capitão que não estava brincando quando o chamou para o combate, avançando contra sua defesa utilizando-se de diferentes táticas para distraí-lo e golpeá-lo. Afetado pela surpresa, ele pôde apenas recuar e se defender, sob os gritos e vaias de seus subalternos, que viam aquilo como uma oportunidade de descontar suas frustrações naquele que era, provavelmente, a fonte delas.
O elemento surpresa se dissipou rapidamente, no entanto, e as defesas da rainha logo passaram a ser utilizadas conforme o capitão reagia e deferia ataques poderosos em sua direção. Era um embate equilibrado. A força bruta de Óllis contra a agilidade e experiência de Dalária, criando uma dança que seria leta, caso fosse a intenção dos dois combatentes. Ela tinha consciência daqueles que se juntavam ao redor do círculo fechado para observar aquele espetáculo, mas não se importava. Estar fora do palácio, longe da política e dos imbecis da corte a fazia sentir-se extremamente bem.
Quando o adversário lançou-se num ataque que, de tão violento, beirava a estupidez, a rainha antecipou-se com uma finta e, colocando-se ao lado do elfo, deu-lhe uma pancada com a parte chata da espada no peito. Com a espada erguida numa posição de ataque imprudente, Óllis perdeu o ar ao sentir a espada chocar-se contra seus pulmões. Ele caiu no chão, ofegante.
- Morto. - Declarou Dalária, jogando a espada no chão aos seus pés. Não durara muito o duelo, mas fora o suficiente para fazer aquecer seu corpo dolorido pela cavalgada. Ajeitando o cabelo que lhe caíra sobre a testa, ela encarou os soldados ao redor. Alguns deles estampavam perplexidade em seus olhos. Às vezes se esqueciam que sua rainha fora um dia uma guerreira assim como eles, ela pensou. - Alguém quer um pouco?
Ninguém se manifestou ao desafio. Vélis, que encarava a rainha à distância, pareceu querer se aproximar, mas estava hesitante. Dalária revirou os olhos ao ver aquilo.
- Ora, rapazes. Não é possível que se assustem tão facilmente. - Provocou novamente a rainha. Provavelmente estava rompendo com todas as regras e protocolos do exército, mas precisava daquilo, da adrenalina. - Não precisam ter medo de me derrotar. Estou aqui para isso, para ver o quão bons aqueles que me protegem são.
Novamente, ninguém se aproximou. Um dos soldados, um mais jovem, deu um passo à frente mas, logo em seguida, recuou enquanto encarava o capitão que se postava silenciosamente atrás da rainha. De seu canto silencioso, Vélis encarava as colinas ao redor, como se estivesse à procura de algo. Os olhos franzidos davam-lhe uma aparência envelhecida, como se tivesse imortalizado tarde demais. Sem paciência para os feitios do assessor, a soberana encarou os soldados uma última vez antes de encarar aquele que se adiantara antes.
- Qual seu nome, rapaz?
- Delorah, minha Rainha. - Ele se adiantou, cabisbaixo.
- Pela ausência de cicatrizes, devo concluir que nunca enfrentou uma batalha. - Ela falou, encarando o corpo magro e limpo do elfo. Agora sem as armaduras que usavam nas viagens, era possível analisá-los todos dos pés às cabeças. - Estou certa?
- S-sim, minha Rainha.
- Recém-formado ou simplesmente sortudo?
- Recém-formado, Senhora. - Engolindo em seco, ele olhou para o rosto da rainha e completou. - Tenho somente trinta e dois anos, Alteza.
Alguns dos soldados ao redor riram, como se a idade dele fosse alguma piada interna por eles partilhada. Provavelmente era o mais novo da companhia, percebeu Dalária. Se estava ali, no entanto, devia ser bom. Fosse fraco demais, não seria selecionado para fazer parte de sua Guarda Real, ela sabia.
Aqueles mais próximos de Delorah fizeram brincadeiras, empurrando-o na direção do círculo onde acontecera o combate anterior. Ele resistiu, mas acabou empurrado naquela direção. Aos gritos de "vamos logo" e "não seja um covarde", o jovem elfo finalmente se convenceu a pegar uma espada que estava jogada no chão e assumiu posição de guarda.
- Não tenha medo de atacar. - Pediu Dalária. - Mostre aos seus amigos que a ausência de batismo não o torna um fraco. - "Mostre-me que ainda produzem soldados decentes naqueles quartéis", ela completou em sua própria mente.
Com a visão periférica, ela percebeu que Vélis deixava o local, cabisbaixo. Reprovava imensamente sua atitude, parecia. Ao menos não ousara enfrentá-la em frente aos soldados.
Hesitante, o jovem atacou com menos força e habilidade do que o capitão, o que era esperado. Dalária defendeu, fazendo parecer que se postava defensivamente. Como se tivesse acabado de sair da academia, a rainha refletiu os movimentos dele, dançando conforme o ritmo que ele impunha. Ao redor, vários apontavam e davam risadas ao perceberem o que ela fazia. Não era sua intenção humilhar o jovem soldado, mas sim divertir-se um pouco e, talvez, ensinar uma lição ou outra.
Com ousadia inesperada, Delorah atacou por baixo após uma finta pela direita, quase acertando a rainha com a lâmina afiada. Desajeitado, imprudente, pensou ela, irritada. Após chocar sua espada contra a dele duas vezes, ela declarou entredentes:
- Use a parte chata, garoto.
Ele abaixou o olhar por um momento, rompendo o contato visual dos dois, um erro terrível, caso estivesse combatendo. Uma lição, então, pensou.
Um movimento estupidamente rápido da espada da rainha e a lâmina de Delorah saiu voando pelo ar para cravar-se na grama dois metros à direita. Com o punho da arma, Dalária bateu em seu queixo e, então, passou os pés por detrás de suas pernas, derrubando-o no chão e colocando a ponta afiada sob seu queixo, agora esfolado devido ao soco.
- Uma lição. - Ela falou. - Não sinta-se mal por isso. - Ela apontou com o rosto para os arredores, sem retirar a espada da garganta do jovem elfo. - Nunca deixe que o adversário o distraia. É a receita perfeita para a morte. Inimigos irão gritar e blasfemar no campo de batalha com o exato intuito de tirar sua atenção daquilo que realmente importa: seus movimentos.
Quando terminou de falar, não olhava mais para Delorah, mas para aqueles ao redor. Não era algo que se aplicava somente a ele, sabia muito bem.
- Ainda é verde. - Comentou, por fim, a Rainha. - Tem muito que aprender, mas luta bem. Não se esqueça que tenho alguns milênios mais de experiência nisso. - Os poucos risos que irromperam foram calados por seu olhar frio. - Isso não significa que o inimigo será misericordioso, no entanto.
Jogando a espada de lado, Dalária ofereceu o braço para que o jovem guerreiro se colocasse em pé. Com um tapa em seu ombro e um sorriso, ela reconfortou o derrotado, que sorriu de volta como se não esperasse aquele tipo de atitude da própria Rainha. Ele arrumou as roupas, agora sujas de terra, antes de retornar ao seu grupo de amigos. Todos agora encaravam a soberana com ar de curiosidade.
- Sintam-se livres para continuar sem mim. - Ela disse, simplesmente, antes de virar-se de costas, na direção da cabana. - Eu vou tentar descobrir se algum desses ricos trouxe cerveja para a viagem.
Risos e palmas festivas irromperam entre os soldados, atos genuínos, não impulsionados por normas de etiqueta, mas sim por alegria e respeito. A Rainha, em resposta, os provocou com uma reverência e saiu dali, de fato atrás de um pouco de álcool para molhar a boca após a agitada atividade.
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