Há décadas Dalária não entrava nas criptas sob o palácio de Parsos. Os corredores marrom-claros e as bandeiras lilás estendidas sobre as tumbas sempre a faziam recuar frente ao pensamento de ir até ali para prestar suas homenagens. As cores da morte guardavam as grandiosas estátuas, esculpidas em mármore branco, que retratavam aqueles que vieram antes dela, seus ancestrais e suas famílias. Quatro reis, suas sete consortes e sabem os deuses quantos agregados estariam enterrados ali.
A rainha caminhou até a mais distante das lápides, o último par de estátuas que enfeitava o belo, porém macabro, corredor. As cores claras eram limpas, davam uma sensação de calma, mas seu significado ia na mão contrária. Eram as cores do luto, aquelas que eram usadas somente naquele tipo de ocasião, para velar e enterrar os mortos, principalmente aqueles de ascendência real. O branco do mármore era apenas um detalhe, uma demonstração da riqueza daqueles que ali descansavam.
A elfa, vestida em seu tradicional manto verde com detalhes dourados, o manto da realeza, caminhou até aquelas estátuas. A mais próxima da entrada, a feminina, sua mãe. Morta durante a batalha de Nivellir, tanto tempo atrás. A mais distante, a última da longa fileira, a de seu pai. A morte que lhe dera o trono, provavelmente a que mais lhe doera.
Lembrava-se nitidamente do dia em que, ao preparar o corpo de seu pai para o funeral, um sacerdote encontrara sutis sinais de que o monarca fora envenenado, que não morrera por conta de uma súbita enfermidade, como fora o primeiro diagnóstico. O envenenamento, a morte do soberano de Parsos, a tinha lembrado sobre como uma vida imortal podia acabar de maneira extremamente rápida.
Foi naquele momento, ao lado do elfo religioso, que citava os ritos em profunda tristeza pela terrível morte de seu senhor, que Dalária aceitou de bom grado a tiara que agora pressionava seus cabelos contra a cabeça. Relutara, num primeiro momento, hesitara e duvidara da própria capacidade de assumir aquela responsabilidade. Tivera medo e quase cedera a coroa aos regentes, que administrariam o reino até que ela se sentisse pronta para governar. Sim, era irresponsável e demonstrava fraqueza, mas à época parecia-lhe uma boa opção para fugir daquilo que tanto temia.
Mas ao ver o corpo do pai estirado naquela mesa fria, a língua enegrecida pela toxina letal forçando a linha fina de seus lábios, a princesa decidiu por fim aceitar o manto da liderança e agir imediatamente contra aqueles que a tinham ferido tanto. Não podia confiar em seus regentes, não podia confiar em sua corte. Mal sabia se podia confiar naquele sacerdote que cantava em tons menores ao seu lado.
- Pedi que viessem até aqui hoje por uma ocasião muito especial. - Ela dissera naquela primeira reunião que convocara na corte. Era a primeira vez que se sentava no trono do pai, a primeira vez que usava aquelas roupas simbólicas e a tiara prateada sobre a cabeça. Era também a primeira vez que via a maior parte daqueles que agora se dispunham à sua frente.
Tinha tentado descobrir de todas as formas possíveis quem teria sido o assassino de seu pai, sem sucesso. Tentara ser uma boa moça, agir com autoridade, mas de forma amável, a boa rainha que fora treinada para ser. Mas aquelas ações não surtiram efeito. Eram inúteis frente à vontade implacável daqueles que desejavam o trono de Parsos. Regentes, conselheiros, qualquer um deles teria a ganhar com a morte de um monarca e a passividade da herdeira.
Não mais, decidira naquela manhã, muitos anos atrás. Não mais seria uma marionete naquele jogo de víboras. Então decidiu que tomaria uma atitude drástica, mas que faria com que todos se lembrassem de seu nome e do que era capaz.
- Como é bem sabido por todos nesta corte, - ela começou - meu pai foi assassinado por um traidor cujo nome ainda é desconhecido. O maldito não se entregou e as investigações empreendidas pela Guarda não foram eficientes. - Com um gesto de sua mão, os soldados da guarda entraram no salão, cercando os que ouviam atentamente suas palavras. Alguns elfos murmuraram em estranheza. - Infelizmente, chegamos a um ponto em que é necessário uma pequena, digamos, atitude disciplinar.
Os soldados sacaram suas espadas, como se tivessem ensaiado por meses para aquele momento. Dalária sopesou novamente os prós e contras daquela medida. Àquela altura, decidiu, não havia retorno. Não podia recuar e fingir que nada acontecera. Tinha que agir com pulso firme e irrefreável.
- Dou-lhes uma simples escolha. - Ela continuou, finalizando o irritante barulho dos sussurros que ecoavam pelo salão. - Entreguem o assassino, ou aqueles relacionados a ele. - Tinha certeza de que havia mais de um daqueles malditos envolvidos no atentado. - Cada minuto passado sem uma resposta, um de vocês irá morrer. Meus homens não farão distinção de posição, herança ou status. Um irá morrer a cada minuto em que eu não saiba o nome do traidor. Se todos aqueles aqui presentes morrerem, ao menos terei alguns quartos livres neste palácio ao final deste dia.
Os três primeiros que morreram tiveram o sangue derramado sob o olhar cético dos demais. Nenhum deles acreditara que Dalária levaria aquilo até o fim, não tinham fé em sua capacidade de agir com firmeza quando necessário. Doze morreram antes que o primeiro daqueles imbecis tentasse romper o cerco da guarda palaciana e fugir do salão. Este morreu também. Vinte e quatro, dos mais de duzentos ali presentes, foram os que conheceram a face de Bagla naquele dia. Vinte e quatro membros da corte foram o preço pago até que um dos cortesões ali presentes erguesse a mão e entregasse quatro conspiradores.
Decepcionada, a rainha encarara a multidão à sua frente antes de tomar mais uma perigosa decisão.
- Entristece-me que tenha demorado tanto para que alguém erguesse a mão. - Ela olhou para eles, os olhos azuis inteligentes examinando e julgando cada um daqueles elfos, machos e fêmeas. - Sinto em ter de puni-los pela falta de lealdade. Guardas, dividam-nos em grupos de dez. - E os guardas o fizeram. - Agora, aos senhores, - ela apontou na direção da corte reunida - peço que escolham um de cada grupo. O décimo de cada grupo encontrará estes vinte e quatro do outro lado do véu da morte.
E aquele dia ficara conhecido como o Dia do Décimo. Uma punição terrível, autoritária e implacável que moldara seu relacionamento com a corte pelos próximos trezentos anos. Tinham duvidado de sua capacidade de exercer a justiça dura e pagaram por tal afronta. Desde aquele dia, nunca tinham desafiado a força de sua coroa novamente.
Agora, a estátua de seu pai a encarava com aqueles olhos brancos gelados, um olhar que não dizia nada e, ao mesmo tempo, dizia muitas coisas. Julgamento, era o que lhe parecia naquele momento. O Rei olhava para a filha como que julgando suas ações, suas escolhas e, principalmente, aquela que ela enfrentava naquele momento. Marchar para Alis, para uma possível campanha contra os selvagens, ou ficar ali e proteger os sacerdotes que cantavam na montanha?
- Por que não ambos? - Perguntara-lhe Vélis. - Fique aqui e envie um general para liderar suas tropas.
- Se eu ficar e minhas tropas forem, - ela respondeu - parecerei uma fraca covarde. É melhor que eu sequer me pronuncie em relação a isso.
- Minha rainha, com todo o respeito, está tornando complicado um assunto demasiado simples. - Insolente, o conselheiro falava em tom baixo, para não chamar atenção dos muitos ouvidos que podiam estar escondidos por trás das plantas do grande jardim. - A questão é simples: vá ou não vá. Por que se preocupa tanto?
- Caro Vélis, parece que nasceste ontem. - A rainha replicou. - Sabe quanto custa atravessar o continente com um exército? Sabe quantos desses reis estão esperando por um deslize para tomar estes territórios? - Dalária pôs as mãos na têmpora, cansada. - Se me precipitar e sair daqui com tudo que tenho, além de deixar os sacerdotes desprotegidos, posso retornar para encontrar meu reino nas mãos de um desses imbecis. Se deixar metade das tropas, serei amaldiçoada por Célion e seus aliados mais íntimos por negligenciar seu apelo. Se ficar, considerar-me-hão uma covarde. A questão não é simples, nunca foi.
Vélis ficara calado, olhando para a rainha como se tivesse subitamente perdido a capacidade de réplica. Irritada, a rainha simplesmente o deixara sozinho e caminhara na direção das criptas. O sistema de túneis que ela tanto evitava agora pareciam-lhe atraentes, como se os reis de outrora pudessem dar-lhe conselhos, mostrar-lhe uma alternativa mais clara àquela perturbação.
Mais uma vez ela sentiu a agitação de sua magia ao encarar os olhos vidrados daquela estátua. Agora aquele olhar parecia transmitir tristeza, decepção. Ela sabia que a expressão do mármore gelado mudaria conforme seu humor, sua visão de si mesma, mas não importava. Naquele momento, sentia-se próxima do pai, ainda que de uma maneira desconfortável.
Aquele monarca não hesitara em mergulhar no combate para derrotar aquele rei anão. Ele lançara suas tropas contra os inimigos por quase três mil anos sem medo, mostrando ao mundo o quão poderoso era seu reino e o quão habilidosos eram seus soldados. Mas os tempos eram outros, os elfos de hoje, ainda que em favor da guerra, eram criaturas muito mais políticas que guerreiras. Em seu sangue, corria a sabedoria da traição e da negociação, não da espada e da estratégia militar.
Dalária se perguntou se os reis do futuro, quando enterrados naquela mesma cripta, teriam esculpidas estátuas em sua homenagem que segurariam frascos de veneno e pergaminhos ao invés das longas espadas de ferro branco que seus ancestrais ostentavam orgulhosamente.
Fundos, pensou ela, eram a questão mais importante que qualquer outra. Se decidisse marchar em favor de Alis, de onde tiraria o dinheiro para bancar a locomoção de suas tropas? Mais temia a deserção de tropas famintas do que a política traiçoeira dos reinos ao redor. Marchar às cegas, gastar seu ouro, para lutar uma batalha que ela sequer sabia se realmente iria acontecer. Quando seu pai marchara contra Nivellir, ele tinha certeza de que o plano era sólido, de que encontrariam uma fortaleza ali, abrigando o remanescente da decadente raça dos anões. Agora, era diferente. Célion pedia-lhe o impossível. Pedia que marchasse contra um exército imaginário de feéricos que nem Silhy saberia onde se escondia.
Talvez seja uma questão para os deuses, refletiu. Talvez devesse deixar que a mão poderosa das deidades guiassem os exércitos dos Treze Reinos rumo àquela última vitória contra os selvagens. Por um lado, ela entendia o pedido do rei de Alis, via a necessidade de um ataque à altura daquele sofrido para intimidar os feéricos antes que estes se sentissem confortáveis o suficiente para agir novamente. Por outro, ela não via vantagem alguma em lançar uma campanha cega, em entregar aos deuses o rumo de seu povo.
- Talvez seja a vontade Deles. - Uma voz falou atrás dela. Uma criada estava parada na outra ponta do corredor, cabisbaixa como se tivesse se arrependido imediatamente de falar. Ela parecia ter lido os pensamentos da rainha.
- O que quer dizer com isso, garota? - Sua voz era seca e imperativa.
- Talvez esta seja uma oportunidade dada pelos deuses para que expresse sua fé. - Ótimo, uma fanática. Dalária revirou os olhos. - E se for este o momento de agir? E se os Silhy deseja que marche? Vai ficar parada e assistir à distância enquanto os outros reinos lutam em Seu nome?
A rainha encarou a jovem elfa de cabelos louros, surpresa com a insolência, com a liberdade que ela tomara para si de falar abertamente daquela forma. A garota parecia resoluta, como se certa de que suas palavras eram a absoluta verdade, ainda que mostrasse um tanto de medo em suas feições. Sabia que, se pegasse Dalária num dia ruim, poderia sofrer graves consequências por aquelas palavras audaciosas.
- Sinto muito, minha rainha. - Ela disse, por fim. - Pensei que seria melhor falar e ser punida do que não dizer nada.
Com um gesto, Dalária dispensou a criada, que saiu andando rapidamente sem dar qualquer indicação do motivo original para sua presença ali. A rainha olhou para a estátua uma última vez, o mármore imóvel e eterno a encarou de volta. Com o punho fechado, ela bateu contra as inscrições que diziam o nome e a data de início e término do reinado do monarca.
Talvez fosse a vontade dos deuses, pensou ela. Talvez devesse marchar na vaga esperança de encontrar e aniquilar o lar dos selvagens que por milênios vinham atormentando seu povo. Nunca se considerara uma religiosa, mas gostava de manter as divindades contentes, realizava os festivais, os ritos e as cerimônias, tinha um conselheiro pessoal que dizia ouvir as vozes dos deuses e as repassava para si. Talvez fosse melhor ouvir o que Eles tinham a dizer, pensou por fim.
Quando saiu da cripta, deixando a morte e o frio para trás, adentrando no calor agradável dos corredores do palácio, Dalária mandou chamar Vélis, ao qual ordenou que uma expedição fosse imediatamente preparada. Iria para onde o alto-sacerdote vivia há seis mil anos, para onde os religiosos élficos cantavam sua canção de primavera. Era hora de ir até Nivellir, ao templo que fora construído sobre as ruínas da fortaleza anã.
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