- Ao inferno que ficarei aqui parada. - Alick falou para si mesma, a voz baixa demais para que alguém do lado de fora a escutasse. Ela amarrava a espada na cintura, encarando a parede de pedra gelada da Gruta.
Pedira à Matriarca que a deixasse partir. Assim que a Fura-Coração a dispensara, ela seguira até o salão na entrada da cavernaa em busca de autorização para partir com Lyssa. Não confiava em Azar para mantê-las seguras e, não lhe importava o parecer de Estella, não via a fadinha com condições psicológicas e físicas para uma excursão além das fronteiras da Floresta. Mas não importava o quanto insistisse, Malthus Desven não a deixaria partir. Como se precisassem de mais uma bruxa ali, treinando os recrutas. Como se já não houvessem sentinelas o suficiente naquele servicinho entediante.
A bruxa respirou fundo, encarando sua pequena sacola e tentando se lembrar da lista padrão de mantimentos a serem levados naquele tipo de viagem, a sensação de que esquecera algo atormentava o fundo de sua mente. Uma última checagem não revelou seu erro e Alick decidiu, então, partir logo, antes que perdesse o rastro deixado pela batedora - se é que esta deixaria algum.
Sobre a calça e a camisa, ambas leves para favorecer uma caminhada acelerada, ela jogou o tradicional manto negro das bruxas, as mangas longas cobrindo sua marca de nascença no braço esquerdo - uma mancha escura disforme que contrastava com sua pele extremamente clara. Com o capuz cobrindo o rosto, ela amarrou a sacola às costas e saiu de seu quarto nos alojamentos, encarando o corredor longo.
Ainda estava vazio, naquele horário tão cedo. O sol ainda não terminara sua jornada noturna, ainda não surgira no horizonte distante, ao menos não totalmente. Os primeiros raios já brilhavam contra as folhas que formavam o teto fechado da floresta, mas a parte inferior ainda era tomada pela escuridão e pela geada da manhã. Os primeiros seres que despertavam em meio às árvores já partiam em suas atividades matutinas, por vezes levando casacos ou fogo mágico que os ajudava a manter-se aquecidos. Alguns, os menores e mais estranhos, aqueles com os quais Alick nunca conversara e sequer sabia os nomes de suas raças, não trajavam qualquer peça, apenas andavam nus pela floresta como se o frio não fosse congelante naquele momento.
Caminhando discretamente, a bruxa Ferro-Brasil procurou evitar os olhares curiosos das demais bruxas e de feéricos com os quais cruzava eventualmente. Ninguém lhe perguntaria o que estava fazendo se mantivesse a cabeça baixa e os modos silenciosos, assim esperava.
Conforme o frio da manhã foi lentamente se tornando menos congelante, mais criaturas podiam ser vistas caminhando entre as folhas. Uma fada passou por Alick, que se escondeu por temer que se tratasse de Estella, mas era apenas alguma outra daquelas criaturas aladas, que caminhava serenamente, acompanhada de um drakar.
Ela andou por cerca de uma hora antes de chegar à uma área menos densa da floresta, onde as árvores tinham troncos menos espessos e já não haviam tantos seres mágicos perambulando por entre as folhas. Alguns roedores e animais menores, sim, mas a Gruta estava muito atrás e as moradas luxuosas dos feéricos ainda mais distantes. Estava próxima à fronteira, além das torres de vigia e da maior parte das armadilhas mágicas. Somente o escudo etéreo que envolvia toda a Floresta Negra a separava do mundo élfico lá fora.
Por isso foi uma surpresa quando, com a audição atenta, Alick escutou uma voz irritantemente familiar. Era Malthus, percebeu ela enquanto recuava alguns passos na direção de um arbusto próximo. Se estivesse atento, o feérico a encontraria facilmente ali, mas, pela graça da Deusa, ele não parecia interessado em encontrar bruxinhas fugindo às escondidas do território da Matriarca.
Ao contrário, o guarda-costas da velha Ode conversava com uma fêmea feérica, uma bela moça cujos traços quase felinos faziam com que ela parecesse prestes a pular contra uma presa a qualquer momento. O que eles estavam fazendo ali? Alick se perguntou enquanto tentava permanecer completamente imóvel, silenciosa como a noite.
A noite, pensou ela com um sobressalto. Ainda era cedo o suficiente para que aquela energia remanescente do luar fizesse com que sua própria magia passasse despercebida aos radares dos dois feéricos que se aproximavam calmamente, debatendo assuntos triviais que a bruxa não se incomodou em tentar entender.
Como se estendesse um manto negro ao redor do próprio corpo, Alick deixou que sua magia noturna a encobrisse, que seu poder tornasse as sombras ao redor daquele arbusto ainda mais escuras. Não o suficiente para tornar óbvia sua presença ali, mas o bastante para que qualquer um que olhasse em sua direção não a enxergasse. Talvez fosse melhor sair dali lenta e cuidadosamente, prestando atenção nos passos para não fazer qualquer barulho, talvez devesse arriscar ao invés de ficar ali parada como uma criança curiosa.
Mas se Malthus a escutasse, se qualquer um dos dois percebessem sua presença... bem, o macho sabia que ela requisitara permissão para deixar a Gruta. Se ele a encontrasse ali, tão longe de casa àquela hora da manhã, com certeza entenderia de imediato o que se passava e a teria cumprindo punições em menos de meia hora. Ele podia ser um idiota, mas não era burro, lembrou-se.
- Acha que Sirien poderia fazer o trabalho? - Malthus perguntava à fêmea. Os dois estavam tão próximos agora que Alick começou a temer seriamente pela própria vida. Se a descobrissem, talvez sequer se lembrassem da missão de Lyssa e Azar. Não, eles presumiriam que ela os espionava, qualquer que fosse o motivo, e a teriam julgada por traição, provavelmente. O feérico adorava aquele tipo de julgamento, disso ela tinha certeza.
- Ela é muito jovem. - A fêmea falou. Sua voz era doce, quase hipnotizante. Alick se perguntou se Malthus não se sentia afetado por aquela estranha ternura. - Inexperiente. Não daria uma tarefa como esta em suas mãos.
Desven pareceu ponderar sobre aquelas palavras. Naquele momento, a Ferro-Brasil sentiu a curiosidade crescer em seu peito, tomando conta de sua mente. De que eles estavam falando?
- Talvez devamos pedir que outra vá. - Ele concordou, enfim, com a fêmea, mas ainda parecia incomodado com aquela decisão. - No entanto, se enviarmos alguém treinado e experiente, a rainha pode suspeitar de nossas intenções.
- Ela irá suspeitar de qualquer coisa que façamos. - A estranha respondeu. - Até mesmo se ficarmos parados, ela suspeitará. Acha que se enviarmos uma novata como emissária ela terá qualquer chance contra aquela corte?
- Fale menos. - Malthus falou, como se sentisse que estava sendo observado. O que quer que fosse, percebeu Alick, era o motivo daqueles dois estarem tão longe do covil da Matriarca. Não queriam, ou não podiam, ser ouvidos por qualquer um que pudesse fofocar por aí a respeito daquela conversa.
O olhar do feérico subitamente se voltou para a floresta ao redor, interrompendo o contato olho-a-olho que os dois tinham mantido por todo aquele tempo. Ele parecia sentir a presença de Alick, que se sobressaltou, quase rompendo o véu negro que a envolvia e saiu correndo dali. Mas a bruxa se repreendeu e tornou a concentrar-se na própria invisibilidade. Vamos, pensou, continuem caminhando, malditos.
Desven encarou as árvores e o arbusto onde a Ferro-Brasil se escondia, quase como se sentisse uma presença inexplicável ali. A fêmea observou com um olhar curioso enquanto o macho se entretinha com as folhas silenciosas. Uma reza silenciosa à Deusa passou rapidamente pela mente da bruxa e, após alguns segundos de silêncio sepulcral na floresta, o feérico se voltou novamente para a companheira e tomou seu braço, retornando à caminhada lenta. Alick soltou um suspiro aliviado.
- Devia ser menos paranoico. - Repreendeu a fêmea conforme os dois seguiam pelo caminho de volta à Gruta. - Acha que Fedra enviaria seus lacaios para nos espionar aqui?
Malthus não respondeu.
Alick deixou que as palavras assentassem em sua mente antes de desfazer seu véu protetor - a magia noturna já era quase imperceptível naquele momento, o que tornava suas sombras inúteis - e seguir na direção contrária àqueles dois. Se Malthus estava conspirando contra a rainha das fadas...
A bruxa não se deixou terminar aquele pensamento. Como tinha aprendido há anos, fez o que podia para encontrar o rastro deixado pelas duas viajantes e, já tendo conhecido o cheiro de ambas, conseguiu descobrir facilmente a direção a seguir.
Não era diretamente para o sul, percebeu, conforme atravessava a fronteira mágica da floresta. Azar guiava a fadinha numa direção que era quase contra-intuitiva, caminhando para leste antes de seguir para o sul, na direção de Til Onag. Talvez tivesse algum conhecimento que lhe faltava, pensou Alick. Era uma batedora, afinal. Estava acostumada a caminhar por aquelas terras sem trombar com elfos e, principalmente, sem ser encontrada.
Então ela seguiu naquela direção, hora seguindo o cheiro, hora a própria intuição que a comandava seguir por determinados caminhos. Haviam muitos, a bruxa notou. Muitos caminhos de terra batida, talvez construídos pela própria passagem de rebanhos e aproveitados também pelas bruxas que faziam a patrulha e defesa daquela região. A planície era vasta e vazia, nenhuma vila ou cidade por quilômetros e quilômetros, apenas as esparsas árvores e os rebanhos que pastavam silenciosamente na grama alta.
Quando o sol chegou ao seu ponto mais alto, aquecendo o dia e torrando as costas de Alick, ainda cobertas pelo manto negro, a bruxa não cessou a caminhada. Talvez fosse melhor parar para alimentar-se, mas ela decidiu que devia encontrar as duas companheiras primeiro. A refeição poderia esperar. Uma vez que tivesse contato visual com Lyssa, descansaria um pouco, mas somente o suficiente para manter-se alimentada e hidratada sob o calor. Não podia arriscar perder o rastro sutil que Azar deixava, ou seria obrigada à retornar para casa com o rabo entre as pernas, uma vez que não tinha noção de como chegar à fortaleza abandonada por conta própria.
E foi somente quando o astro-rei já traçava sua trajetória descendente pelo céu que Alick finalmente avistou o par de asas claras de Lyssa à distância. Do topo de uma formação rochosa, a bruxa as viu seguir por uma trilha tortuosa há cerca de cinco quilômetros dali, caminhando num ritmo apressado para o sul, seguindo o padrão tortuoso e inconstante que Azar imprimira desde o início daquela jornada. Exausta, ela tirou alguns minutos para relaxar e engolir um pouco da carne e das frutas que trouxera consigo para o início da viagem, o único momento em que poderia comer comida saborosa antes que esta apodrecesse em sua sacola.
Dali, Alick via nitidamente a planície que se estendia por todos os lados e podia monitorar tranquilamente a caminhada das duas por um bom tempo antes de perdê-las de vista. Se Azar não fizesse nenhum desvio muito grande na rota, deviam chegar em um ou dois dias a Til Onag, percebeu.
Um olhar ao redor, após o término de sua refeição, fez com que um sorriso surgisse nos lábios da bruxa. Nenhum sinal de vida inteligente. Nenhuma coluna de fumaça, nenhum grupo de soldados, nada que indicasse a presença de elfos naquela região do mundo. Talvez devesse sair mais vezes, pensou, sentir mais a luz do sol queimar a pele, absorver aquela parte de sua magia à qual ela nunca prestava atenção. Vivia tanto tempo enfiada na escuridão da Gruta que praticamente se esquecia da estranha dualidade presente em seu próprio corpo, em sua relação com a magia do sol e da lua.
Alick saltou da pilha de pedras rumo ao chão cerca de dois metros abaixo. Dali não conseguia ver as duas que caminhavam à distância, mas tinha uma vaga noção da direção na qual seguiam e não demorou muito para conseguir encontrar seu rastro entre os galhos quebrados e a terra batida. O restante do dia, as poucas horas que restavam até o anoitecer, passaram-se vagarosamente conforme a bruxa seguia aquele rastro discretamente. Azar era boa, percebeu, conseguia esconder bem o cheiro e os sinais visuais de sua passagem. Somente alguém que sabia o que procurar conseguiria encontrá-las naquele caminho tortuoso e confuso.
A noite já chegava quando a Ferro-Brasil parou de repente, percebendo que não mais sentia o traço de Azar Fura-Coração no caminho à frente. Teriam elas desviado sem que Alick percebesse? A bruxa olhou para todos os lados, para o caminho de onde viera e para aquele se se estendia à sua frente, tentando imaginar para onde aquelas duas tinham ido. Estava seguindo para o sul, no que ela imaginava ser a direção da fortaleza, mas não seria surpresa alguma se a batedora mudasse a rota novamente àquele ponto. Talvez tivessem simplesmente parado para alimentar-se e descansar, ou talvez...
Alick parou aquele pensamento ao ouvir um som de grama sendo pisada atrás de si. Os sentidos aguçados se colocaram em prontidão, em menos de um segundo, a espada já estava em sua mão pronta para ser utilizada. Ela escutou atentamente enquanto a presença caminhava por entre o mato alto, escondendo-se, tentando ser o mais silenciosa possível. A bruxa apenas observou atentamente, esperando. Quando finalmente perdeu a paciência, quando já começava a imaginar o que poderia estar acontecendo ali, ela falou:
- Mostre-se! - Um outro som veio das suas costas, do sul. Mais um curioso a observava.
- Alick? - A voz de Lyssa chamou daquele lugar. Azar soltou um xingamento nada educado de onde espreitava.
Alick jogou a espada no chão, em parte frustrada por ter se deixado cercar por aquelas duas, em parte achando divertido o fato de não terem reconhecido uma à outra de imediato. Quando Lyssa finalmente veio até ela, caminhando por entre as plantas à beira da estrada, Azar fez o mesmo. Não havia mais motivo para esconder-se.
- Que está fazendo aqui? - A pequena perguntou, encarando a amiga com as asas nervosas agitando-se atrás de si. Alick a encarou, ouvindo Azar aproximar-se.
- Bem, eu não poderia ficar enfiada naquela caverna enquanto vocês se divertiam aqui. - Lyssa riu, mas a Fura-Coração apenas aproximou-se das duas e encarou a recém-chegada com desconfiança.
- Sabe que isso terá consequências. - Ela falou e Alick torceu o nariz.
- Eu não conto se vocês não contarem. - Brincou, tentando aliviar a tensão que se aproximava. A Fura-Coração não estava errada, afinal. - Como sabia que eu estava aqui? - Mudou de assunto rapidamente.
- Acha que sou tão incompetente assim? - Azar parecia ofendida com a pergunta, como se a resposta fosse óbvia. - Assim que ficou há menos de dois quilômetros de nós, minhas defesas dispararam um alarme. Se queria passar despercebida, deveria ter mantido a distância.
Era definitivamente algo para se lembrar da próxima vez que fosse perseguir alguém pelas planícies, pensou Alick. Fora tola em pensar que a outra bruxa não teria proteções e encantamentos espalhados por todos os lugares por onde elas tinham passado. Podia não ser a bruxa mais amada da Gruta, mas era definitivamente esperta o suficiente para cumprir sua função com excelência.
- Já que está aqui, - falou Azar, por fim - ajude-nos a montar o acampamento. Já nos atrasou o suficiente.
A Ferro-Brasil surpreendeu-se com a fala direta e um tanto grosseira da outra bruxa, mas assentiu e, sem dizer mais nada, juntou-se a Lyssa na tarefa de juntar alguns galhos secos para ascenderem uma fogueira. Alick não conseguiu esconder a surpresa quando a fada ascendeu a fogueira sem explodir a floresta ao redor, direcionando uma pequena parte de sua magia para a combustão da pouca madeira que tinham encontrado. Um sorriso surgiu no rosto da pequena em resposta.
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