- Um Santuário. - Dissera Asmin. - Um lugar de adoração e proteção, construído pelos deuses em tempos antigos para abrigar os seus filhos em tempos de necessidade.
- Presumo que estes filhos dos quais fala a lenda sejam elfos? - Dreika perguntou, interessada, porém receosa.
- A lenda é anã. - Explicou a bruxa de cabelos loiros. - Provavelmente esta escrita estranha é alguma linguagem anã perdida.
- Acha que devemos descer? - Perguntou Dreika. Azar esperava, calmamente, que as duas terminassem de confabular. Já tomara sua decisão.
- Não deve ser perigoso. - Comentou Asmin. - Talvez haja algo valioso ali.
- Desceremos. - Anunciou Azar, finalmente. - Asmin, ajude os orelhas-redondas. Eles precisarão de apoio para descer essas escadas.
A Flor-Invernal revirou os olhos, mas fez o que a colega pedia. Dando apoio ao escravo machucado, ela indicou ao outro que devia segui-la escada abaixo. Os olhos castanho-escuros do orelha-redonda pareciam assustados e preocupados, como se soubesse que aquele era um lugar estranho e desconhecido. Podiam ser fracos, mas não eram estúpidos.
O grupo desceu pelos degraus lentamente, guiado pela luz mágica acolhedora que iluminava o caminho. As bruxas prestavam atenção em cada canto, em cada ranhura na parede de pedra branca, buscando por ameaças, armadilhas que pudessem ameaçar suas vidas. A superfície, no entanto, era lisa e sem qualquer rachadura, não haviam marcas nas divisões entre as pedras, nada que mostrasse que aquilo tudo havia sido cavado da pedra ou que os blocos brancos haviam sido colocados ali. Aquela estrutura, pensou Azar, parecia ter crescido ali, como uma única pedra que se moldara para tomar aquele formato desejado. Parecia, de fato, algo construído por deuses, não por elfos ou outra criatura conhecida.
Os degraus se encerravam num portal largo que dava entrada para uma ampla galeria em formato circular. Uma linha de colunas, tão brancas quanto todo o resto, acompanhava o formato da parede, destacando-se desta em dois metros, criando uma borda por onde se podia caminhar sem adentrar a área mais baixa no centro. Além das colunas, dois degraus levavam a um chão de pedra negra que, em seu ponto central, ostentava a estátua de um centauro dourado cuja lança apontava inquisidoramente para quem estava entrando ou saindo do santuário.
Tão repentinamente quanto tinha desaparecido, aquela estranha sensação, que a assombrara desde que deixara Til Onag, retornou com força total, atormentando sua mente e fazendo com que a bruxa se curvasse para frente, atordoada e confusa. Era como se a visão do centauro tivesse despertado aquela coisa estranha que a perseguia. Pensara que tudo acabara após o ataque dos orcs, mas agora percebia que estava enganada. Asmin e Dreika a encaravam, a última, após colocar a mão sobre seu ombro, provavelmente perguntava o que estava acontecendo.
A Fura-Coração respirou fundo, tentando recobrar os sentidos, os cabelos amarelo-palha caindo sobre o rosto repentinamente molhado com suor gelado. Aos poucos, seu coração voltou a bater numa velocidade normal, ainda que aquela sensação ainda esmurrasse sua cabeça com toda a força. Azar sentia sua magia e seus sentidos lutando contra aquilo, tentando protegê-la, mas não conseguia fazer nada para cessar o tormento.
Ignorando o martelo sobrenatural que golpeava sua cabeça a cada segundo, ela endireitou-se e encarou as companheiras, que tinham preocupação nos olhos. Dreika parecia pronta para começar uma briga com o centauro naquele mesmo momento, o ar ao seu redor pungindo com energia mágica. Azar fez um rápido sinal para que ela se acalmasse. O que quer que fosse, não seria derrotado por uma simples explosão descontrolada de poder.
A Fura-Coração fechou os olhos e, quando os abriu novamente, viu aquele lugar como um dia fora, num passado distante. Dezenas de pequenas criaturas com barbas avantajadas e cabelos crespos tentavam enfiar-se no cômodo lotado, espremendo umas às outras para conseguir enxergar o que quer que estivesse acontecendo perto do centauro. Definitivamente, anões, concluiu Azar. Eram menores do que ela imaginava e, se podia confiar em sua Segunda Visão - ela sempre pôde - extremamente sujos e, provavelmente, malcheirosos.
Quanto ao tumulto no centro do Santuário, aos pés da estátua, ela teve que caminhar alguns passos para entender o que acontecia. Uma fêmea anã, mais alta que os machos ao seu redor, se erguia sobre um prisioneiro elfo e mantinha a espada apontada para seu pescoço. Completamente nua, seus seios pesados e flácidos balançavam conforme ela se mexia sob o comando da batida de tambores que ecoava pelo salão. Em ambos os lados dela, dois machos encaravam solenemente o prisioneiro, claramente esperando por sua vez de participar daquele estranho ritual. Eles seguravam o que pareciam ser vasos de vidro esverdeados, todos vazios, esperando por qualquer que fosse o conteúdo.
Outras fêmeas tinham se posicionado atrás daquela que parecia ser a estrela principal do evento, todas vestidas de branco e encarando o vazio sem qualquer expressão nos rostos. Atrás delas, o centauro segurava sua lança exatamente da mesma forma como fazia no mundo presente. O que impressionou Azar não foi a nudez da fêmea, as sim a similaridade entre todos aqueles anões. Os mesmos traços, os mesmos pelos corporais - até mesmo nas do sexo feminino - e até mesmo a altura, salva a óbvia diferença entre machos e fêmeas, era similar.
A batida dos tambores foi ficando mais rápida gradativamente, juntamente com o rebolar das anãs, que começaram a cantarolar baixo quando os percussionistas tinham acelerado o suficiente. Conforme tudo ficava mais rápido, a bruxa pôde perceber as expressões nos rostos dos espectadores, todos ansiosos e atentos. Num crescendo, a música ficou mais alta e forte, as batidas cada vez mais martelando contra as paredes do Santuário e reverberando em sua estrutura. Era um cântico mágico, que penetrava a terra muito além do que os olhos podiam ver.
Quando os tambores batiam a uma velocidade que parecia impossível todos na sala pareciam prestes a ter um ataque de nervos. Num movimento repentino, os dois machos que seguravam os vasos se moveram, jogando uma fumaça negra sobre o elfo. Simultaneamente, a canção e a percussão pararam, criando um curto período de tensão onde todos os presentes prenderam a respiração, antes que a sacerdotisa - só podia ser uma sacerdotisa, concluiu a bruxa - abaixasse a espada e cortasse a garganta do prisioneiro, a espada atravessando suas veias como se não fossem nada, derramando sangue no chão abaixo de seu corpo enquanto o elfo cuspia o líquido vermelho pela boca.
Assim que o gorgolejar de sangue parou e os músculos pararam de se debater, os dois machos se moveram novamente. Ninguém na platéia ousava sequer respirar. A tensão era palpável no ar. Os sacerdotes entoavam palavras estranhas conforme posicionaram os dois vasos sobre o corpo do elfo, um sobre a garganta dilacerada e outro sobre a região pélvica. Ninguém se moveu antes que eles terminassem seu serviço, retirando os vasos - ainda vazios - e colocando-os sob a lança do centauro.
- Uma vez inimigo dos povos anões, - começou a falar a sacerdotisa, estendendo os braços para o alto e revelando, de uma vez por todas, que tinha tantos pelos corporais quanto os machos ao redor seu redor - o que uma vez lutou contra nós, agora lutara por nós. Que Yogglteír o receba sob seus braços! - Ela fez uma pausa, esperando que suas palavras atingissem a todos os presentes da forma desejada. - Seja bem-vindo à horda!
-Bem-vindo à horda. - Falaram todos, em uníssono.
Nauseada, Azar desabou no chão, interrompendo propositalmente a ligação com o passado. Após cuspir bile no chão de pedra negra, ela se levantou novamente e encarou as bruxas e os escravos, cujas faces não podiam estar mais confusas. Quanto tempo ficara alheia ao mundo presente? Parecia uma eternidade, mas ela sabia não tinha se passado tanto tempo. Sua Segunda Visão a permitia ver o passado, mas o tempo presente continuava seu caminho normalmente para todos a sua volta.
- O que foi isso? - Perguntou Asmin, finalmente. Os orelhas-redondas se distanciaram um pouco da Fura-Coração quando ela se aproximou das outras bruxas.
- Qual o problema? Eu estava somente olhando para o passado. - Azar respondeu, sem entender o porquê daquela cautela e das expressões exageradamente confusas e assustadas.
- O que era aquela fumaça preta? - Dreika indagou. Agora quem estampou confusão no olhar foi a própria batedora.
- O quê?
- Quando você se aproximou da estátua, falou um nome estranho e começou a exalar uma fumaça preta. - Asmin, que parecia estar menos amedrontada que os demais, explicou.
- Yogglteír era o nome? - Azar perguntou, para a resposta positiva da loira. - Não sei de que fumaça estão falando, mas o nome é de um deus dos anões.
Era estranho, pensou a Fura-Coração consigo mesma. Nunca tivera momentos como aquele em que falara durante uma de suas visões; ao menos não de forma consciente. Ela encarou as bruxas e, então, a estátua do centauro. O que a intrigava, acima de tudo, era a tal da fumaça. Seria a mesma que os sacerdotes tinham jogado sobre o corpo do elfo?
- Bem, o que quer que tenha acontecido aqui, não importa agora. - Anunciou, finalmente. - Seguiremos imediatamente para a Gruta. Talvez lá encontremos respostas.
Asmin e Dreika concordaram. Os orelhas-redondas pareciam ansiosos para deixar aquele lugar de uma vez por todas e, apesar de não quererem aproximar-se muito de Azar, não pareciam dispostos a abandonar a companhia das bruxas. Juntos, os cinco deixaram o Santuário, que foi selado novamente sob seus pés, e seguiram novamente para oeste, na direção da Floresta Negra.
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