LXXVII. A Batalha por Parsos

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A atenção de todos parecia ter se desviado da monarca para a criada e vários soldados agora se aproximavam, prontos para tomar-lhe a vida com estocadas pelas costas. O grito de Dalária foi tudo que a loira precisou para olhar para trás e, com a visão periférica, ver o que estava prestes a acontecer.

Foi então que algo aconteceu. Algo que os olhos da Rainha mal conseguiram compreender.

Um dos soldados tentou enfiar a espada na criada que sequer se mexeu e errou. Não, não errou, percebeu ela. A espada simplesmente passou pelo corpo da elfa como se não houvesse nada ali. O atacante caiu no chão ao não encontrar a resistência que esperava e a criada, mais rápida que qualquer um que a rainha já vira se mover, saiu da posição desfavorável e enfiou sua adaga no pescoço de ambos os soldados — o que estava no chão e aquele com quem ela duelava com dificuldade segundos antes.

Boquiaberta, Dalária mal percebeu que dois vinham em sua direção para matá-la. Mas estes também foram impedidos, desta vez por um ataque de energia etérea vindo da criada, algo que deveria ser impossível para um elfo. Os dois elfos caíram no chão, transformados em massas de carne que sequer podiam ser distinguidas como corpos.

— Você é feérica? — Dalária gritou, estupefata.

Foi, no entanto, interrompida pelo portão principal do salão sendo derrubado por mais elfos da Guarda Real, que imediatamente reconheceram o que acontecia e partiram para cima de seus colegas traidores, lidando com todos em questão de segundos. Imediatamente, os covardes aristocratas se ajoelharam no chão e começaram a implorar por perdão à sua monarca. Dalária simplesmente ignorou as súplicas e sentou-se em seu trono, exausta.

Além de cansada pelos muitos dias de viagem sem dormir ou descansar direito, agora tinha em sua mente aquela cena inacreditável que acabara de se passar à sua frente. Ela observava sem realmente enxergar enquanto a criada, de aparência doce e frágil, caminhava em sua direção e se ajoelhava ao seu lado, na posição de uma conselheira, não de uma súdita.

— O que é você? — A Rainha perguntou, lutando contra o cansaço em sua voz. — Como...

— Fique calma, Majestade. — Ela falava com calma inacreditável após aquela batalha, mas algo em seu rosto parecia triste, como se lhe doesse tirar a vida daqueles traidores.

— Como que não há uma gota de sangue em você? — Dalária começava a duvidar até mesmo que a elfa com quem falava era real.

— Shhh... — Ela pediu. — Eu já quebrei regras demais ajudando você aqui. — Aquelas palavras não faziam sentido, mas a Rainha apenas assentiu com a cabeça. — Apenas... — Ela parecia procurar as palavras certas — confie em si mesma, minha criança, e lembre-se: os elfos não são mais confiáveis do que os selvagens que você tanto odiou.

Dalária não conseguiu encontrar uma resposta àquelas palavras — aquela criatura tinha acabado de chamá-la de criança? —, e pôde apenas ouvir enquanto os passos dela ecoavam pelo salão na direção da saída traseira.

Quase uma hora se passou até que a Rainha se recuperasse de seu estado de torpor, levantando-se imediatamente do trono com uma decisão tomada. Uma decisão que provavelmente custaria seu reino, mas ela já não se importava.

Todos a encaravam, alguns dos vagabundos ricaços ainda imploravam por perdão enquanto outros tentavam parecer resolutos e confiantes. Os soldados simplesmente aguardavam pelas palavras de sua soberana, fazendeiros e profissionais misturados, todos leais ao reino e à corôa.

— Onde está minha corôa? — Ela perguntou, sentindo que aquele capricho era necessário. Imediatamente, um guarda correu na direção de seus aposentos para buscar o artefato. Quando este voltou, Dalária vestiu a tiara encrustada de diamantes sem pensar no que aqueles que a assistiam estavam pensando.

Engolindo em seco, a Rainha de Parsos encarou a multidão à frente, os corpos espalhados pelo salão e absorveu os olhares apreensivos. Ela tentou afastar as memórias da luta, impedir que a confusão retornasse à sua mente e, aos poucos, conseguiu recuperar o controle.

— Quando assumi o trono, fui desafiada pelos assassinos de meu pai a defender essa corôa, sem importar-me com o sangue derramado. — Ela começou a falar. — Naquele dia, pela traição de parte desta corte e omissão pela outra parte, ordenei que um em cada dez morressem para purificar este Palácio, afastar dele o fantasma da traição.

Alguns dos olhares mais resolutos fraquejaram frente àquelas palavras, como ela desejara que eles fizessem. Os pedintes malditos, que imploravam por perdão, começaram a suplicar mais alto.

— Devo confessar que fiquei surpresa por tantos milênios de relativa paz. — Mais uma pausa. — Mas nada que é bom dura para sempre e vocês fizeram o favor de provar mais uma vez que não são nem um pouco melhores que os selvagens que, supostamente, ameaçam constantemente nosso reino.

"Quando os soldados atentaram contra a vida de sua Rainha, não ouvi uma única voz protestar contra. Quando alguns de vocês blasfemaram contra minha identidade, a maioria ficou calada, esperando até que o vencedor fosse óbvio, para apoiarem aquele que sobrevivesse."

A Rainha desceu os degraus que a colocavam acima dos miseráveis, olhando cada um deles nos olhos antes de continuar. Sabia que parecia uma louca, que suas vestes não eram apropriadas e que havia sangue por todo o seu corpo, mas talvez fosse exatamente daquela cena que os livros de história se lembrariam: uma rainha de vestes curtas, que mostravam demais de sua pele, todas rasgadas e ensanguentadas, loucura e cansaço no olhar, dando ordens e guiando seu povo no que poderia se tornar o momento mais difícil de sua história.

— Naquela última vez, eu poupei nove em cada dez vidas. — Ela continuou após o que pareceu uma eternidade. — Esperava que vocês aprendessem a lição, mas estava enganada.  Aqueles daqui que não estavam presentes naquele dia, provavelmente são filhos ou amigos dos que estavam, sabem muito bem o que aconteceu. Hoje, no entanto, não haverá misericórdia.

— Minha rainha, por favor. — Dalária riu quando viu que quem falava era Talion.

— Eu estou farta, Talion. — Sua voz saiu mais rouca do que pretendia. — Farta de traições, desses bajuladores idiotas que não servem para merda nenhuma. Desta vez vocês mexeram no vespeiro errado. — Ela se afastou novamente, fazendo um sinal com o braço para que os guardas cercassem a corte. Alguns tentaram protestar, mas não conseguiram furar o cerco. — Guardas, livrem-se destes imbecis.

A Rainha de Parsos sequer permaneceu no salão para assistir à chacina que se seguiu. Sob os gritos amedrontados dos inúteis da corte, sob o som de espadas sendo enfiadas e puxadas, ela deixou o recinto maldito e seguiu diretamente para seus aposentos.

Enquanto era banhada por duas criadas que tentavam ao máximo tirar o sangue e a sujeira velha de seu corpo, Dalária pediu que tentassem encontrar a criatura que ela pensara ser uma simples criada, mas ninguém no Palácio parecia tê-la visto após a última vez que falara com a própria Rainha.

— Talvez eu esteja sendo manipulada esse tempo todo. — Ela comentou em voz alta, sem intenção. As duas criadas a encararam, confusas. — Não liguem para mim. Estou cansada demais para medir minhas palavras.

Se ainda houvesse uma corte, ela tinha certeza de que as duas sairiam dali e iriam direto para os aposentos de quem molhasse suas mãos com mais ouro para contar o que a Rainha acabara de falar. Dando de ombros, Dalária pediu que elas voltassem a esfregar suas costas doloridas.

Assim que saiu do balneário e retornou ao seu quarto, ela se sentiu revigorada, como se todo o peso que sentia antes sobre si fosse apenas a sujeira, que agora que aquilo tinha saído de seu corpo, estava renovada.

Ainda um pouco irritada e pensando se tinha tomado a decisão certa ao lidar com a corte, a Rainha vestiu a armadura que pedira aos criados para deixarem pronta — uma armadura de combate, não uma cerimonial como a que usara semanas antes — e seguiu imediatamente de seus aposentos para o quartel da Guarda Real para anunciar os próximos planos.

Era hora de partir para o ocidente e trazer de volta a cabeça de Vélis numa estaca.

Fura-Coração (COMPLETO - EM REVISÃO)Where stories live. Discover now