LXIV. Luz e Escuridão

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— Acha mesmo que uma energia vinda do sacrifício de criaturas vivas pode ser boa? — Alick estava cansada de argumentar, mas sentia que aquilo devia ser feito. — Escravizar a magia de alguém que só merece a paz do sepulcro?

— Nossas ancestrais sacrificavam todo tipo de criaturas para agradar a uma Deusa que sequer ouve nossas preces e nunca tiveram problemas. — Ela parou de desenhar, fechou o livro e encarou a Ferro-Brasil nos olhos. — Não é muito diferente, se pensar.

— É completamente diferente. O sacrifício, que já não era a mais saudável das práticas, não escravizava a magia de um ser para satisfazer desejos de grandeza.

— Está mesmo disposta a desperdiçar essa chance de vencer a guerra por causa de um senso moral do qual nossos inimigos tão obviamente não compartilham? — Azar elevou o tom da voz, como se estivesse ficando irritada. — Nunca pensei que fosse uma idealista, Alick Ferro-Brasil.

— Não é idealismo, Fura-Coração. É medo! — Respondeu Alick. — Essa magia não lhe pertence, é roubada e deturpada. Não deveria ser usada. Sequer sabemos se isso não tem efeitos negativos na pessoa que a utiliza.

— Suponho que saberemos com o tempo. — O sorriso no rosto de Azar dizia que ela não se importava muito com as possíveis consequências. — Tudo que sei agora é que essa é nossa chance de conseguir uma vantagem — ela complementou após algum tempo —, de consertar tudo, e eu não irei desperdiçá-la.

Alick se calou, apenas observando enquanto a outra bruxa seguia com seus desenhos sobre o papel. Talvez ela estivesse certa, pensou. Talvez a Aliança devesse aproveitar qualquer oportunidade que a Deusa pusesse em seu cainho para derrotar o inimigo, não importando o qual errado aquilo parecesse.

Qualquer que fosse a resposta, decidiu a Ferro-Brasil, não caberia a ela, e sim à Matriarca  e às Rainhas, que ponderariam sobre aquela magia estranha.

— Não consegue rastrear Lyssa? — Perguntou, decidindo mudar de assunto. Azar pareceu frustrada com aquela interrupção ao seu trabalho.

— Acha que já não tentei? — A Fura-Coração respondeu. — Ela está além de meu alcance. Provavelmente não quer ser encontrada.

— Ou foi capturada e não consegue retornar.

— Saberemos se ela não aparecer pela manhã. — Apesar das feições desinteressadas, havia certa preocupação na voz da bruxa. — Ela está irritada, precisa respirar um pouco. Deixe que o faça.

Alick engoliu sua preocupação no momento em que um grito ecoou pela floresta. Era masculino, vinha do acampamento.

— Merda. — Exclamou antes de sair correndo na direção de Eralyn e do prisioneiro com Azar logo atrás.

Encontraram o elfo desacordado, com a cabeça sangrando, mais um ferimento somado aos vários estampados em seu corpo. Ele recusara ajuda, provavelmente com medo de que as bruxas fossem feri-lo ao invés de curar, mas agora não tinha escolha. Enquanto Azar se ajoelhava ao seu lado e começava  a aplicar um curativo, tentando estancar o sangramento, Alick correu pela mata à procura do fugitivo.

Não havia sinal do maldito. Nenhum barulho de pés batendo contra a pedra, nenhum cheiro que ela pudesse captar. Ele escondera seus rastros, provavelmente usando magia. Era esperto, experiente. Não havia nada que a Ferro-Brasil pudesse fazer além de rezar para que ele não retornasse com mais soldados.

"Se o elfo encontrasse Lyssa..."

Alick não se deixou terminar aquele pensamento. Tinha que acreditar que a fada seguira na direção da Floresta, não na oposta. Tinha que ter fé de que logo a encontraria e elas conseguiriam seguir seu rumo tranquilamente até a Gruta. Restava-lhe apenas rezar, e isso a frustrava profundamente. A impotência era mais afiada que uma faca.

— Que confusão é essa? — Ela perguntou para si mesma enquanto caminhava até Azar e Eralyn.

— O que aconteceu? — A Fura-Coração perguntava ao elfo semi-consciente. Ele balançava a cabeça, como se tentasse espantar moscas invisíveis que o incomodavam.

— Gehr... — Murmurou o elfo. — E-ele me atacou.

— Achei que tivesse prendido o maldito, Azar. — Alick interveio. Se a Fura-Coração tivesse sido displicente com sua magia, a culpa do risco que o grupo agora corria recaía sobre ela.

— Eu prendi. — Respondeu, irritada. — Ele deve ter usado algum contra-feitiço que eu desconheço.

"Ou teve ajuda", refletiu a Ferro-Brasil, mas decidiu guardar aquilo para si. Se Eralyn era um espião inimigo, era melhor pegá-lo em flagrante do que jogar acusações. Se ele fosse inocente, teria tempo para provar-se assim, ainda  que fosse mais fácil abatê-lo enquanto estava ferido e cambaleante.

Azar esticou o braço na direção de uma pedra caída ao lado do elfo. Sob a luz da lua, Alick pôde ver que havia sangue na superfície. A arma usada para nocautear Eralyn.

— Eu dormi por um minuto. — Resmungou ele novamente. — Acordei com um movimento repentino, mas quando percebi o que estava acontecendo, já era tarde demais.

— Bem, isso aqui vai deixar uma marca. — Azar ignorou as palavras. — Descanse e tente não se mover muito. Não sou curandeira, mas isso aqui deve manter sua cabeça funcionando por mais alguns dias.

A Fura-Coração falava enquanto ajeitava a atadura que agora envolvia o topo da cabeça do elfo. Quando ela fez o movimento para se levantar, ele segurou seu braço com firmeza. Assustada, Azar o encarou com o punho livre fechado, pronta para deferir um golpe.

— Obrigado, bruxa. — Ele falou, simplesmente, soltando sua mão em seguida.

Revirando os olhos, Alick foi até o outro lado da fogueira, onde se sentou silenciosamente.

— Durma primeiro. — Ela falou para Azar após alguns minutos. — Gastou energia com aquele livro. Deixe que eu guarde o acampamento por enquanto.

A bruxa não falou, apenas assentiu com a cabeça e se deitou sobre um monte de folhas que ajeitara para formar uma cama improvisada. Assim que repousou a cabeça, Azar parecia ter adormecido, deixando Alick e Eralyn sozinhos, o último ainda com a mão na cabeça, tentando encontrar uma posição confortável para dormir.

Muito tempo se passou até que a Alick Ferro-Brasil fosse deixada sozinha com seus pensamentos à frente do fogo. Ela não acordou Azar para seu turno, decidida a deixar que a companheira descansasse, com esperanças de que Lyssa retornasse durante aquela noite.

A fada, no entanto, não retornou. Sozinha, a bruxa deixou que sua mente passeasse por todos os assuntos que a afligiam conforme a lua caminhava pelo céu e o fogo à sua frente se transformasse numa fraca brasa que consumia a madeira.

Fura-Coração (COMPLETO - EM REVISÃO)Where stories live. Discover now