LIII. Textos Antigos

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— Vamos descobrir o que há do outro lado, então? — Perguntou, tentando se levantar, mas tropeçando e voltando ao chão. — Maldição!

— Precisa comer algo, Azar. — Lyssa esticou uma fatia da maçã que cortara.

— Precisarei de algo mais substancial do que uma fruta velha. — A Fura-Coração mexeu em sua bolsa, procurando por algo. — Sobrou alguma carne?

— Sinto muito, Azar, mas acho que Lyssa está certa dessa vez. — Alick  interviu. — Precisa de um pouco de açúcar nas veias.

Bufando, a bruxa pegou a fruta da mão de Lyssa e a devorou em poucos segundos, deixando a fada boquiaberta. Alick riu.

— Achei que já estivesse acostumada à voracidade de uma bruxa esfomeada, fadinha. — A Ferro-Brasil comentou.

— Bem, não partilhei tantas refeições assim na Gruta. — Foi a única resposta.

Após algum tempo de descanso e tentativas falhas de levantar, Azar finalmente conseguiu ficar em pé, ainda que auxiliada por Alick. As três caminharam na direção da porta, Lyssa ainda sentindo as pernas moles e trêmulas.

Com esforço considerável, a Fura-Coração girou o trinco da porta e empurrou, abrindo o caminho para a escuridão adiante, uma escada que parecia descer infinitamente até o núcleo da Terra.

Alick assobiou, impressionada. Aquela escuridão parecia pulsar, forçando seu caminho contra a luz que penetrava pelo que um dia fora o telhado da fortaleza. Um passo além da porta, Lyssa sentiu o peso daquele feitiço desaparecer e a magia retornar ao mundo, seus sentidos repentinamente sobrecarregados pela onda de energia.

Ainda assim, havia algo mais ali. Não era a energia pesada e negativa da excomungação, mas sim algo mais frio que parecia lutar contra a magia. A mesma sensação que tivera sob a montanha, percebeu ela.

— Bem, o que estamos esperando? — Perguntou a Fura-Coração, dando alguns passos escuridão adentro. Respirando fundo, Lyssa ascendeu uma chama para iluminar o caminho.

Elas desceram vagarosamente por mais tempo que a fada se deu ao trabalho de contar. As paredes lisas de pedra eram sufocantes e o ambiente parecia cada vez mais frio à medida que se distanciavam mais e mais da superfície. Novamente, estavam sob a terra. Um calafrio percorreu o corpo de Lyssa, que cruzou os braços para amenizar a queda da temperatura.

— Isso é antigo. — Comentou Azar, passado tempo suficiente para que a pequena sentisse sua garganta seca. — Os cortes na pedra são mais rudimentares que na fortaleza acima.

— Pode ser simplesmente porque não quiseram gastar recursos com um simples corredor. — Alick debochou, sarcástica.

— Já viu os elfos economizarem recursos, Ferro-Brasil? — Azar, ainda que irônica, não parecia disposta a brincadeiras. 

Alick respondeu a isso com um grunhido divertido e voltou sua atenção ao corredor. Ninguém mais falou até que chegaram a uma pequena câmara quadrangular com um púlpito de pedra, sobre o qual descansava um livro aberto. Nas paredes, quatro estátuas idênticas de elfos com os braços erguidos ao céu serviam como colunas de sustentação para o teto abobadado cheio de estrelas esculpidas da pedra.

A Fura-Coração caminhou até o livro, segurando a capa de couro com as duas mãos, encarando as palavras no papel velho e frágil. Ela tentou virar uma página, que rasgou e se desfez sob o toque de seus dedos.

— Fada. — Ela chamou, parecendo irritada. Lyssa se aproximou, trazendo o fogo consigo. Azar pegava de sua bolsa um pedaço de carvão e papel. — Ilumine aqui. Só não ateie fogo ao livro.

A pequena controlou a respiração, tomando cuidado para não fazer exatamente o que a bruxa pedira que não fizesse.

Azar sacou de sua bolsa de suprimentos um pedaço fino de carvão e um pedaço comprido de papel. Atenta, ela começou a fazer anotações e copiar algumas das runas que encontrou nas páginas envelhecidas. Lyssa compreendia pouco das anotações da bruxa — Estella ensinara-lhe algumas letras do alfabeto, mas não o suficiente para que conseguisse entender todas as frases — e nada das runas élficas do livro antigo. Falavam a mesma língua, no entanto utilizavam alfabetos diferentes. A fada se perguntava o por quê quando Alick perguntou:

— O que, exatamente, está fazendo? — A Fura Coração, compenetrada em seu estudo, ergueu os olhos surpresa, como se não esperasse aquela interrupção.

Azar levou alguns segundos para responder, enquanto copiava alguns desenhos. Quando finalmente tirou os olhos do livro, a bruxa tirou alguns fios de cabelo que caíam sobre os olhos e suspirou profundamente.

— Por que acha que os elfos se esforçariam tanto para proteger um livro? — Perguntou. — Quando estive aqui na primeira vez, esbarrei com algo. A fada sentiu também. — Ela apontou para Lyssa. — O que quer que seja, deixou uma marca em mim, fez com que eu encontrasse algo parecido no caminho de volta à Floresta. É uma longa história, mas não é importante agora.

Com isso, ela se voltou novamente para sua tarefa. A fada, resistindo às perguntas que surgiam em sua mente, manteve o fogo brilhando forte atrás dela. Alick tampouco falou novamente, parecia contente em interrogar Azar após saírem daquele lugar. A Ferro-Brasil recostou-se numa das paredes e esperou enquanto a outra fazia anotações aparentemente intermináveis naquelas runas que Lyssa não compreendia.

— Gostaria de poder levar o livro. — A Fura-Coração anunciou após quase uma hora. — Há muita informação aqui.

— Leve, então. — Disse a fada, simplesmente.

— Essas páginas devem ter mais de mil anos. — A bruxa apontou para as folhas que se rompiam a cada vez que ela as pegava em suas mãos. — Não sobreviveria a uma viagem. Por isso, tenho que memorizar o máximo possível. — Ela olhou para Alick. — Consegue ler as runas elficas?

— É claro. — Azar sorriu com aquela resposta e a chamou com um gesto da mão.

— Tente memorizar tudo que eu indicar.

Com o aceno  de concordância da Ferro-Brasil, as duas começaram a estudar, juntas, os dizeres do livro, deixando Lyssa alguns passos atrás, ainda concentrada em manter a luz acesa. Enquanto tentava não perder controle de seu próprio poder novamente, ela observou a estrutura do salão, percebendo a magia estranha que o rodeava.

Ao contrário da magia etérea que rodeava o mundo vivo acima, tomando a forma dos elementos conforme entrava em contato com cada ser vivo ou objeto, ali embaixo havia algo diferente, uma energia quase que contrária à magia normal. Tampouco era como a energia da excomungação, que simplesmente impedia a circulação do poder, não a sua existência.

Não, percebeu a fada, o que havia ali embaixo era a mesma magia que ela conhecia, mas uma variação nova, desconhecida. Era como uma vibração antagônica à própria magia, uma força que, assim como aquela que fluía sob a montanha em Ag'loth, agia como uma contra-correnteza para com os fluxos naturais.

Lyssa não sabia qual era a fonte ou o propósito daquela forma nova de magia, mas algo dentro dela lhe dizia que estava diretamente ligada aos escritos daquele livro e ao propósito daquela estranha jornada até aquela fortaleza.

Repentinamente curiosa, a fada encarou por sobre o ombro as palavras e desenhos no papel, tentando entendê-los, mas sem sucesso. Não se sentia bem naquele lugar, aquela magia parecia errada, distorcida, algo que não deveria existir naturalmente — talvez não fosse natural, pensou — e ela temia que estudar aquilo pudesse ser arriscado e imprudente.

Decidiu, no entanto, manter-se calada. As bruxas pareciam entretidas demais com aquele conhecimento e ela pouco poderia fazer para argumentar com elas. Teria que retornar à Floresta e, somente então, encontrar alguém que pudesse esclarecer tudo aquilo.

Fura-Coração (COMPLETO - EM REVISÃO)Where stories live. Discover now