XLVIII. Irmãos de Tão Longe

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Lothar sabia que devia convencê-la a ficar, sabia que a outra bruxa ficaria devastada ao saber que a amiga a tinha abandonado, mas não haviam palavras em sua garganta. Quando Dreika se virou para caminhar para o outro lado, na direção das planícies pelas quais passaram dias antes, ele segurou seu braço. O olhar que a Flor-Invernal lhe lançou foi assustador, mas sua mão não se abriu, o pedido para que ela ficasse era claro. 

— Eu tenho que ir. — A bruxa puxou o braço, violentamente. Lothar nada pôde fazer contra aquela força. — Ela vai entender.

O homem não tentou segurá-la novamente e tampouco alertou as bruxas que confabulavam dentro da caverna. Dreika não era uma prisioneira. Se ela quisesse ir, era livre para tal.

O dia seguinte se passou como que um borrão. As memórias se misturavam às emoções conflituosas e a falta de notícias do exército que partira para defender a Floresta o fazia tremer todas as vezes que parava de caminhar para descansar as pernas.

O luto, o medo, a agonia de não poder expressar o que sentia — que trazia consigo um peso que ele nunca sentira —, o deixavam louco. A única coisa que podia fazer, no entanto, era caminhar a esmo pela floresta vazia. Haviam rumores, somente rumores, do que acontecera ao exército da Aliança. Os mais radicais diziam que foram destruídos por um exército de elfos e agora ateavam fogo à floresta, enquanto a maioria simplesmente acreditava que fora um alarme falso e não havia nada a ser enfrentado.

Lothar, nem qualquer outro ser naquela Floresta, estava pronto para o que encontraram quando as cornetas de paz soaram dentre as árvores, anunciando o retorno do exército. Curandeiros pararam tudo que faziam para atender a feridos e exaustos soldados, criaturas ociosas correram na direção de onde vinham as tropas, apenas para encontrar uma cena que fez o homem mudo cair de joelhos, as pernas perdendo sustentação no momento em que seus olhos recaíram sobre o sorridente porta-estandartes que marchava ao lado direito da rainha das fadas.

As orelhas dele, e do chefe que caminhava à esquerda de Fedra — entre ela e o líder dos feéricos — eram redondas como as de Lothar. Para sua surpresa, eles não eram escravos libertados. Usavam armaduras, belos trajes de metal e couro adornado por runas misteriosas, gemas e desenhos enfeitavam os escudos e elmos. Eram soldados, não refugiados. E não eram somente dois, percebeu ele, encarando ao flanco direito daquela tropa que marchava calmamente para o refúgio da Floresta.

Um nó se formou em sua garganta, tornando-o repentinamente consciente de seus arredores. Estava ajoelhado no chão, as mãos tremendo como se estivesse com frio no ar quente e úmido, alguns que se aproximavam perguntavam se estava tudo bem, mas ele não teria palavras para responder-lhes, mesmo se conseguisse falar.

O exército parou, as falanges de bruxas e feéricos rapidamente se dispersando para cumprir seus afazeres cotidianos, deixando apenas os orelhas-redondas, as lideranças e uma pequena guarnição de feéricos ali, em pé, entre as árvores, enquanto esperavam por algo. A Matriarca, provavelmente.

O chefe dos seus iguais, no entanto, olhou para Lothar, finalmente percebendo sua presença ali e se apressou em sua direção. Ele parecia ser bondoso, tinha um sorriso largo e verdadeiro por baixo da barba bem cultivada. Aproximou-se do ex-escravo, estendendo-lhe uma mão para que se levantasse. Com pernas trêmulas, ele o fez.

— E você, amigo, que faz aqui? — Perguntou. Lothar apenas encarou os detalhes de sua roupa, maravilhado.

— Ele não fala. — Explicou Asmin, que apareceu repentinamente detrás de um salgueiro. — Algum feitiço o impede de se comunicar.

— Meu nome é Belthor, homem. — Ele falou e algo dentro de Lothar se rompeu.

Homem. Ele nunca ouvira aquela palavra, mas lhe parecia tão perfeita para descrevê-lo... lágrimas escorreram por seus olhos enquanto encarava Belthor, sem saber exatamente por quê estava chorando. O Chefe agarrou-lhe o ombro e o puxou para um abraço, como se compreendesse aquele redemoinho confuso que era sua mente.

Lothar tornara-se livre quando aquelas bruxas o tinham resgatado, mas a sensação de ser livre nunca o tinha atingido daquela forma até ouvir o nome que lhe fora dirigido. Uma nova onda de lágrimas pressionou seus olhos a tal ponto que eles pareciam prestes a explodir. Lágrimas de felicidade, de alívio e de luto. Não conseguia acreditar que, dois dias após a morte de Rolf, aquilo acontecera. Parecia uma brincadeira de mal gosto dos deuses, uma piada da qual o amigo provavelmente ria de algum lugar no pós-vida. Não era justo, no entanto. Não era justo.

— Venha cá, meu amigo. — Falou o homem. — Vamos trazer essa sua voz de volta.

Asmin o encarou, incrédula. Até mesmo a rainha das fadas, que se aproximara em algum momento durante o abraço, parecia não acreditar no que ouvia. Belthor as encarou, um sorriso nos olhos.

— Ele estará cantando à fogueira antes do sol raiar. — Falou, debochado. — Há coisas neste mundo que nem mesmo sua magia pode resolver.

Lothar não pôde acreditar quando o Chefe o levou para comer junto aos seus homens no acampamento que eles montaram às pressas sob a proteção das árvores antigas. Não pôde acreditar nas histórias que aquelas pessoas contavam, de uma terra distante e fértil, maravilhosa, onde nenhum mau chegaria, pois a proteção da Deusa era forte demais para ser violada.

Homens e suas fêmeas — mulheres, ele tinha que aprender o termo — confabulavam da mesma forma que os outros escravos faziam em seus abrigos durante as curtas noites, ainda que o peso que pairava sobre esta conversa fosse muito menor. Não havia sobre estes o peso da chibata, da fome e da servidão. Eram livres, eram guerreiros que vieram para lutar pelos seus iguais.

Maravilhado, Lothar pôde apenas ouvir enquanto histórias eram compartilhadas, músicas eram cantadas e flertes eram trocados. As mulheres, tão doces e belas, faziam-no perder o fôlego a cada vez  que falavam. Uma delas, de cabelos e pele negra como a noite, o fez sentir-se quente e desconfortável como nenhuma outra jamais o fizera. Ela o encarava com interesse, mas todos ali o faziam. Ele se tornara o centro das atenções, todos queriam ouvir sua história.

Quando Belthor encontrasse uma forma de recuperar sua voz, ele a contaria. Ele contaria sua história e daria um jeito de unir-se àquela tropa para lutar por aqueles que deixara para trás nas mãos dos elfos. Escutando a cantoria e as conversas que duraram até o amanhecer do dia seguinte, Lothar jurou para si e à Deusa que lutaria.

Pois agora tinha por quem lutar. Tinha até mesmo uma Deusa a quem rezar! Olhando para as estrelas que brilhavam entre as flores, Lothar, o homem, sorriu, deixando que as lágrimas corressem livremente pelo seu rosto.

Fura-Coração (COMPLETO - EM REVISÃO)Where stories live. Discover now