XXXIII. Os Reis de Outrora

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Vélis ficara calado, olhando para a rainha como se tivesse subitamente perdido a capacidade de réplica. Irritada, a rainha simplesmente o deixara sozinho e caminhara na direção das criptas. O sistema de túneis que ela tanto evitava agora pareciam-lhe atraentes, como se os reis de outrora pudessem dar-lhe conselhos, mostrar-lhe uma alternativa mais clara àquela perturbação.

Mais uma vez ela sentiu a agitação de sua magia ao encarar os olhos vidrados daquela estátua. Agora aquele olhar parecia transmitir tristeza, decepção. Ela sabia que a expressão do mármore gelado mudaria conforme seu humor, sua visão de si mesma, mas não importava. Naquele momento, sentia-se próxima do pai, ainda que de uma maneira desconfortável.

Aquele monarca não hesitara em mergulhar no combate para derrotar aquele rei anão. Ele lançara suas tropas contra os inimigos por quase três mil anos sem medo, mostrando ao mundo o quão poderoso era seu reino e o quão habilidosos eram seus soldados. Mas os tempos eram outros, os elfos de hoje, ainda que em favor da guerra, eram criaturas muito mais políticas que guerreiras. Em seu sangue, corria a sabedoria da traição e da negociação, não da espada e da estratégia militar.

Dalária se perguntou se os reis do futuro, quando enterrados naquela mesma cripta, teriam esculpidas estátuas em sua homenagem que segurariam frascos de veneno e pergaminhos ao invés das longas espadas de ferro branco que seus ancestrais ostentavam orgulhosamente.

Fundos, pensou ela, eram a questão mais importante que qualquer outra. Se decidisse marchar em favor de Alis, de onde tiraria o dinheiro para bancar a locomoção de suas tropas? Mais temia a deserção de tropas famintas do que a política traiçoeira dos reinos ao redor. Marchar às cegas, gastar seu ouro, para lutar uma batalha que ela sequer sabia se realmente iria acontecer. Quando seu pai marchara contra Nivellir, ele tinha certeza de que o plano era sólido, de que encontrariam uma fortaleza ali, abrigando o remanescente da decadente raça dos anões. Agora, era diferente. Célion pedia-lhe o impossível. Pedia que marchasse contra um exército imaginário de feéricos que nem Silhy saberia onde se escondia.

Talvez seja uma questão para os deuses, refletiu. Talvez devesse deixar que a mão poderosa das deidades guiassem os exércitos dos Treze Reinos rumo àquela última vitória contra os selvagens. Por um lado, ela entendia o pedido do rei de Alis, via a necessidade de um ataque à altura daquele sofrido para intimidar os feéricos antes que estes se sentissem confortáveis o suficiente para agir novamente. Por outro, ela não via vantagem alguma em lançar uma campanha cega, em entregar aos deuses o rumo de seu povo.

- Talvez seja a vontade Deles. - Uma voz falou atrás dela. Uma criada estava parada na outra ponta do corredor, cabisbaixa como se tivesse se arrependido imediatamente de falar. Ela parecia ter lido os pensamentos da rainha.

- O que quer dizer com isso, garota? - Sua voz era seca e imperativa.

- Talvez esta seja uma oportunidade dada pelos deuses para que expresse sua fé. - Ótimo, uma fanática. Dalária revirou os olhos. - E se for este o momento de agir? E se os Silhy deseja que marche? Vai ficar parada e assistir à distância enquanto os outros reinos lutam em Seu nome?

A rainha encarou a jovem elfa de cabelos louros, surpresa com a insolência, com a liberdade que ela tomara para si de falar abertamente daquela forma. A garota parecia resoluta, como se certa de que suas palavras eram a absoluta verdade, ainda que mostrasse um tanto de medo em suas feições. Sabia que, se pegasse Dalária num dia ruim, poderia sofrer graves consequências por aquelas palavras audaciosas.

- Sinto muito, minha rainha. - Ela disse, por fim. - Pensei que seria melhor falar e ser punida do que não dizer nada.

Com um gesto, Dalária dispensou a criada, que saiu andando rapidamente sem dar qualquer indicação do motivo original para sua presença ali. A rainha olhou para a estátua uma última vez, o mármore imóvel e eterno a encarou de volta. Com o punho fechado, ela bateu contra as inscrições que diziam o nome e a data de início e término do reinado do monarca.

Talvez fosse a vontade dos deuses, pensou ela. Talvez devesse marchar na vaga esperança de encontrar e aniquilar o lar dos selvagens que por milênios vinham atormentando seu povo. Nunca se considerara uma religiosa, mas gostava de manter as divindades contentes, realizava os festivais, os ritos e as cerimônias, tinha um conselheiro pessoal que dizia ouvir as vozes dos deuses e as repassava para si. Talvez fosse melhor ouvir o que Eles tinham a dizer, pensou por fim.

Quando saiu da cripta, deixando a morte e o frio para trás, adentrando no calor agradável dos corredores do palácio, Dalária mandou chamar Vélis, ao qual ordenou que uma expedição fosse imediatamente preparada. Iria para onde o alto-sacerdote vivia há seis mil anos, para onde os religiosos élficos cantavam sua canção de primavera. Era hora de ir até Nivellir, ao templo que fora construído sobre as ruínas da fortaleza anã.



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*Este capítulo possui 2230 palavras*

Fura-Coração (COMPLETO - EM REVISÃO)Where stories live. Discover now