A fada aproximou-se do pequeno povoado élfico. Era uma vila de pouco mais de mil habitantes, mas com um grande estaleiro que produzia navios de qualidade excepcional.
Ao menos, era o que tinham lhe informado.
Se suas fontes fossem seguras, aquele era o único lugar na costa norte do continente onde poderia encontrar um barco capaz de fazer a travessia para o Norte.
A terra distante era não muito mais que uma lenda distante, contada por aqueles que gostavam de assustar viajantes e crianças inocentes com histórias de monstros malignos e terras de magia infinita.
A única coisa que ela sabia, por certo, era que os humanos vinham de lá. Era lá que eles tinham uma sociedade livre da perseguição dos elfos, livre de qualquer tipo de guerra. Onde viviam em paz, lavrando a terra e criando gado.
Mas a distância era grande demais para que qualquer navegador pudesse dizer que já tinha chegado naquele lugar. Como os humanos tinham feito a travessia? Ela não tinha certeza. Mas, baseado no que aprendera nos últimos meses, se aproximava a época do ano perfeita para tal empreitada.
A fada, no entanto, viajava sozinha. Não tinha uma tripulação, muito menos um barco. Precisava encontrar ao menos o último. E, mais que tudo, precisava escapar dos elfos, levando consigo sua preciosa carga.
O livro, que pesava em sua sacola, era sua única companhia de viagem desde que deixara a floresta para trás. As palavras malditas que nele estavam escritas, e a necessidade de manter essas longe do alcance do inimigo, eram as únicas coisas que a mantinham sã e capaz de seguir em frente.
Ela desceu pela encosta do monte que dava vista ao vilarejo calmamente, agindo como se fosse um de seus habitantes. O capuz cobria seu rosto e a capa escondia as asas presas por tiras de pano ao seu corpo. Demais detalhes que pudessem denunciar sua identidade eram encobertos pela escuridão da noite.
As ruas estavam quietas. Os poucos habitantes que podiam ser vistos eram fêmeas e crianças. Os machos provavelmente tinham sido convocados para trabalhar dia e noite no estaleiro, ou lutar nas legiões élficas.
Ninguém sequer olhava para a figura encapuzada que vagava silenciosamente rumo ao estaleiro.
No local indicado pelo barulho, dezenas de elfos e escravos trabalhavam nas mais diversas tarefas, carregando tábuas gigantescas até seus lugares na doca seca, onde os navios eram construídos, inspecionando as três novas embarcações que já estavam na água, além de outras coisas menores que a fada sequer sabia de que se tratavam.
Do lado de dentro de um modesto prédio de pedra construído à beira do mar, com vista para toda a baía, funcionava uma espécie de taverna que atendia aos marinheiros em descanso. Bêbados ocupavam o lado de dentro, gritando obscenidades às fêmeas que também circulavam pelo lugar.
A visitante silenciosa caminhou até o balcão, em busca de alguém que não estivesse a ponto de desmaiar devido ao excesso de bebida. Um elfo entediado servia bebidas e observava a bagunça. Levando em conta a sua aparência cansada, a fada imaginou que estava sóbrio.
— O que posso servir? — Ele perguntou, sem perceber que a visitante não era uma elfa.
— Procuro o contra-mestre das docas. — Respondeu ela, o coração acelerado parecendo que ia saltar por sua boca.
— Sem bebida hoje? — O elfo grunhiu e, então, apontou para um corredor lateral da taverna. — Siga aquele corredor até o final. A última porta te leva ao escritório do contra-mestre.
Ela não agradeceu, apenas caminhou na direção indicada, tentando fazer o mínimo de barulho possível, chamar o mínimo de atenção.
O corredor era sujo e malcheiroso, mais até do que o salão da taverna em si, o que fez com que a fada se perguntasse que tipo de coisas nefastas eram praticadas detrás das muitas portas que recheavam a parede esquerda. Pelos sons que podiam ser ouvidos de onde ela estava, eram quartos que essas portas guardavam.
O escritório do contra-mestre, por outro lado, era relativamente limpo e organizado, com alguns livros e muitos papéis espalhados por uma grande mesa de mogno, provavelmente registros de navios e funcionários do estaleiro.
Atrás da mesa, sentava-se um elfo mais baixo que a maioria, que vestia um chapéu e roupas chiques, de aparência muito mais cara do que a fada jamais vira. O elfo a olhou de cima abaixo, julgando suas vestes e a sacola que carregava no ombro.
— O que quer aqui? — Ele perguntou, mal-humorado.
— Preciso de um barco. — Ela anunciou, simplesmente. O elfo riu.
— Então veio ao lugar errado, querida. — Disse. — Toda a mão de obra desse estaleiro está a serviço da corôa. Nenhum navio que sai daqui vai a outro lugar que não o serviço naval de Linea.
A fada tremeu ao ouvir aquele nome maldito. Tentou impedir, mas não conseguiu, o nó que se formou em sua garganta. Quis queimar tudo naquele lugar imediatamente, mas não podia. Precisava de um barco.
— Eu preciso de um barco para realizar uma grande travessia. Foi dito que só poderia encontrar um aqui. — Respondeu ela, assim que conseguiu juntar as palavras necessárias em sua mente.
— Retire o capuz, por favor. Não é nada educado esconder o rosto e aqui nós prezamos por um mínimo de decência. — Por mais irônico que pudesse parecer, ele parecia sério. Ela retirou o capuz, percebendo o olhar de estranheza que o contra-mestre lhe dirigiu. — Quanto ao barco, sinto muito, mas nem que você pudesse pagar, eu poderia fornecer-lhe um.
Irritada, a fada deixou que um filete de fogo percorresse o contorno de seu corpo. Uma ameaça curta e direta.
— Eu preciso de um barco. — Disse novamente.
— Quem você pensa que é para me ameaçar? — O elfo sacou uma faca e apontou na direção dela. — Talvez eu devesse dar-te um barco. Não conseguiria navegar um sozinha, mesmo.
Cansada daquela discussão imbecil, a fada lançou seu fogo contra o elfo, rompendo suas barreiras mágicas e atingindo sua mão que segurava a faca. A lâmina foi ao chão e o macho gritou devido à dor.
— Escute bem. — Ela se aproximou, sacando a própria espada e apontando na direção do inimigo. — Você assinará a permissão de viagem e ordenará que vinte escravos sejam enviados ao navio em questão. Se me desafiar, este lugar irá queimar e eu te deixarei vivo para que seja obrigado a explicar o que aconteceu para os seus superiores.
O elfo não respondeu. A fada deixou que seu fogo se espalhasse pelo ambiente, sem queimá-lo, mas deixando a mensagem clara. Ele tremia e engolia em seco, mas resistia em ceder.
— Autorize a viagem e poupe a si mesmo de ter que explicar tudo ao seu chefe. — Falou novamente, pacientemente. — Três navios prontos, o casco de mais quatro ou cinco, madeira para construir uma frota inteira, sem contar com os escravos e funcionários que morreriam. Quantos meses de trabalho perdido? Acho que tudo sairia de seu bolso patético.
— Nunca conseguiria destruir tudo. — O elfo riu, mas se surpreendeu ao ver que a fada ria de volta.
— Não me desafie, elfo. — Falou, por fim. — Há muitas mortes que eu gostaria muito de vingar. Não faça com que eu desconte toda a minha raiva em você e seus asseclas.
Algo no olhar e nas palavras da fada convenceu o imbecil de que ela falava sério e que, em seu estado de ira, poderia causar todo o dano que prometia.
Ele pegou a papelada de um dos navios com as mãos trêmulas e o assinou com a pena que descansava na mesa. Imediatamente, mandou chamar um escravo que foi ordenado a separar vinte de seus iguais para viajar. Tudo sob a vigia silenciosa da fada, que ficou parada num canto do escritório durante todo o período.
O contra-mestre pareceu aliviado quando ela finalmente saiu, levando consigo a papelada que garantia a legitimidade de sua viagem. Agora, se fosse parada por qualquer embarcação em seu caminho para o norte lendário, poderia mostrar aquilo e dizer aos elfos que não havia motivo para contestar sua posse do navio.
— Se tentar algo, lembre-se de minha promessa. — Ela disse, antes de lançar uma pequena chama que queimou o pescoço do elfo, uma eterna lembrança de sua passagem por ali.
Os escravos no navio pareciam ter acabado de acordar de uma noite conturbada de sono. Demoraram alguns minutos para colocar o navio em condições de zarpar. Enquanto eles se preparavam, sem entender exatamente o que estava acontecendo, a fada observava o estaleiro, desejando que pudesse, de fato, destruir aquele lugar. Talvez conseguisse fazer um bom estrago, mas definitivamente não destruiria tudo sozinha.
Ela não conseguiu evitar o sorriso ao pensar no lugar em chamas.
Quando o navio finalmente zarpou, debaixo da noite estrelada, a fada deixou que suas asas se libertassem das amarras, esticando-as e batendo um pouco antes de descer ao convés para garantir que tudo estava em ordem e explicar aos humanos o que estava acontecendo e para onde estavam indo.
A manhã chegou e trouxe consigo certa paz ao coração de todos os viajantes. Os escravos, agora libertos, estavam voltando para o lar de seus ancestrais.
A fada, por sua vez, seguia para o desconhecido, para cumprir sua promessa à Rainha Fedra e esperar. Ela esperaria a eternidade, se preciso, mas encontraria uma forma de consertar tudo que acontecera de errado. Honraria suas irmãs e vingaria suas amigas.
Um dia, esse dia chegaria. Mas só os deuses poderiam dizer quanto tempo demoraria.
FIM