PRÓLOGO OBSESSIVO

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Estaria Maria errada por julgar negativamente a mulher que abria a caixa dos sentimentos verdadeiros a sua frente? Era notável que a ideia de sua patroa era mostrar que ela era humana, que errava, que também, assim como ela, tinha defeitos e qualidades e que é parte de um mundo estranho e subversivo. Mas... tudo indicava que ela escolhera seus caminhos. Que ela fez coisas ruins porque queria fazer. Estaria ela tímida, com medo de exibir o seu corpo para esta pessoa por não aceita seus atos, por não ter tido a liberdade quando criança? Seria ela a errada por estar presa no pudor de um mundo hipócrita?
Quando Ângela deu inicio a sua história lhe tocando os lábios, Maria pensou que em poucos minutos estariam deitadas na cama se amando como ela fez com sua amiga de adolescência que teve que abandonar por conta da ignorância dos pais. Mas esta, claramente, não tinha nada de sua amiga do passado. A patroa não era sensível, não era amorosa, não tinha um sorriso cativante que a fez se entregar na primeira oportunidade que tiveram e que, infelizmente, fora tragadas pelas correntes católicas. Ângela tinha algo dela. Demonstrava ser uma mulher segura, inteligente, ou talvez tivesse uma esperteza disfarçada de sabedoria. Sua ambição era controversa. Maria a todo momento perguntava se a sua ambição não havia se tornado uma obsessão. Se ela não estava perdida em pensamentos infantes que jamais conseguiu alçar do poço das lamentações.
Ângela, um nome de anjo, mas... como todos sabemos, nem todos os anjos são seres bondosos com asas. Mas, assim como ela, podem não ter um sexo exato. Os olhos pretos por de baixo das lentes azuis queriam fugir de sua beleza natural e expor a beleza angelical dos livros, das capelas, dos grandes pintores que viam apenas uma cor para manifestar o que significava ser um ser etéreo. Mas os anjos são figuras mitológicas criadas a visão da beleza carnal. Seria então isso baseado na luxúria, avareza... seriam os anjos os protetores da carne e não da alma? É dito que são belos, tão magnânimos que os humanos não teriam coragem de olharem diretamente para suas graças. Ângela seria parte disso? Quem é este ser que se apresenta com palavras carinhosas, estranhamente, na mesma proporção que palavras pecaminosas. Ângela consegue dominar a palavra a seu favor, tornando uma coisa simples de se entender numa nomenclatura abstrata. Uma escada com a métrica simplória de subida e descida, na estrutura subliminar de Penrose em sua escada sem um começo, meio e fim.
Seria sexo e cama, só isso. Porque falar tanto de si, porque dizer que Maria, sua empregada é mais que sua amiga? Que fundamento há nas palavras que dançam em seus lábios como bailarinos do Teatro Municipal Carioca? Como os dedos delicados de uma mulher tem a força de se tornar os calos de ensaios enfadonhos?
O mais espantoso, para Maria, era ora pensar em se entregar de corpo e alma a Ângela. Ela é uma linda mulher, tem qualidades físicas, financeiras, sentimentais que a deixam reflexiva, curiosa para tê-la lhe tocando. E ela sabe como tocar. Por muitas vezes Maria se via perdida nas palavras da patroa, e quando recobrava a consciência do seu mundo de histórias, estava segurando um gemido das suas mãos que perambulavam o bico dos seus seios, acariciavam sua barriga repleta das marcas da gravidez. Ela não tinha certos receios de homens. Não se importava com as linhas imperfeitas que guiavam a carne lisa para deformidades ditatoriais de uma sociedade doente. Ela não. Ela andava com seus dedos pelas linhas, ia até a púbis, sorria enquanto não perdia o tom da história, retornava até os seios e repetia o ato como uma peça cativante de grandes grupos cênicos. Ângela tinha nas mãos o ouro maciço. Com ele, ela caminhava pelos calvários adormecidos da carne que antes não lembrava que a dor também poderia significar a saída para a felicidade. Não, Ângela não tinha receios de tocar nas cicatrizes, marcas das mulheres mães, àquelas que carregam suas vidas e o peso de outras vidas no ventre livre. Marcas daquelas que sofreram por meses e que padeceram em lágrimas sobre um paraíso criado por poetas e filósofos para fugir das responsabilidades da cria infante e glorificar, santificar a figura feminina e isola-la em quatro paredes eternas da pseudo boa educação.
Esta era Ângela. Suas asas estavam riscadas de dinheiro e sangue, sorrisos e ironia. Sua penugem foi prostrada sobre o corpo cansado desta que ouve calada com inúmeros pensamentos confluentes. Este anjo comprou nos mercados populares a passagem para o éden. Estaria ela lhe buscando para este mundo endeusado, ou segurava a lança do destino e estava prestes a subvertê-la ao submundo? 
Há coisas que não dá para explicar. E estas são as mais dolorosas, na mesma proporção que as mais felizes. 
De olhos fechados, Maria a via jogada ao chão. Sentia que ela estava impregnada com uma gosma branca, fedorenta. Ela sentia as dores do líquido que tentava tapar sua visão, mas não desistia de caminhar sobre tetos de vidros. Não chorava, de fato, mas as lágrimas caíam. Ela sorria, sorria como um hospede em constância no hospício. Ora pulava, ora caía de cara. Quem era essa figura com estrutura sutil, mas com atos rústicos? Ela pulava, pulava... Voltava ao chão com mais determinação, mais insanidade. Maria a via de costas, mas sabia que o seu sorriso rachava os céus. Ela pulava cada vez mais alto, ela estava prestes a experimentar o que ninguém havia se deliciado. Ícaro fora um tolo que sonhava em voar com asas improvisadas e caiu sobre sua vergonha. Não, ela não. Ângela estava se construindo, se reconstruindo com as derrotas que insistiam em manipular seus atos. Ela jamais se renderia aos que lhe julgavam sem pena. Diziam que ela não chegaria perto das nuvens. Ela permanecia pulando quando todos caminhavam nas linhas precisas da moda.
Maria enxergava uma pessoa ferida. Chagas distintas a tudo que já viu. Uma constelação inteira estava explodindo para que ela transcendesse a quimera extraordinária. 
Foram dias de ossos quebrados, mas ela conseguiu construir a máquina da cobiça. Este ser se apresenta como sua igual, mas seus olhos dizem não, não sou igual a você ou a qualquer pessoa que ousa me pôr nos pés da cadeira dos reis. Ela nasceu na plebe, de fato, mas seu caminho estava sendo traçado para a realeza e jamais olharia para trás para se arrepender do rio rubro que estava deixando.
Ela voou.
No alto, ela pode ver o que já foi. Pode dizer que teve dias trevosos, mas também pode dizer que há glória na perseverança incansável dos determinados a mudar a estrutura da física a uma coisa nova, especial, única.
Há um medo nos olhos de Maria, mas há também admiração.
– Quem é você?
Enfim Maria tira da garganta perguntas entaladas e dá para sua parceira que a quer de jeitos que Maria não pode imaginar.
– Ângela. O resto são palavras...

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