BOCA FECHADA NÃO ENTRA MOSCA

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Após a tentativa de abrir a porta, Mieko dá precisas e fortes batidas na porta do quarto que, normalmente, está destrancado.
– Isso é brincadeira? Novamente com essa porta trancada?
– Estou deitada, não estou afim...
– Está afim sim. – Impaciente, levanta a voz – Não gosto dessa porta trancada, já falei isso. Vamos, abre logo. Precisamos conversar.
– Ah, mãe, por favor!
– Não. – Bate com mais força, fazendo a porta estremecer. – Não tem favor. Abre. – Mieko ouve a filha bocejar de tédio. – Carla Washington Martins, se você não abrir essa porta agora vai dar adeus a sua mesada do ano inteiro.
Mieko, apesar do nome, é uma das poucas heranças japonesas que possui, isso com os seus olhos pequenos esticados. Já o seu cabelo é castanho natural. Grande parte de sua família não tem mais traços asiáticos e muitos nem usam mais os nomes de sua terra natal. Mieko ainda tem o sobrenome Yoshida, mas preferiu não pôr nas filhas por pedido do seu marido, mas Camila, sua filha mais velha usa o sobrenome como parte do seu nome artístico Camila Yoshida, alegando que é mais bonito e diferenciado.
Com o tédio desenhado na face, Carla abre a porta, volta e senta em sua cama enquanto sua mãe, de frente para ela, começa um discurso.
– Eu quero saber agora. Não me venha com papinhos melancólicos. Eu conheço muito bem você e sei que quando quer alguma coisa você não consegue raciocinar direito. Então sem rodeios. Você sabe alguma coisa desse garoto?
Camila dá uma pausa olhando para o chão. Balança a cabeça e solta um sorriso de lado, sutil, mas do tamanho suficiente para sua mãe notar, pegar no seu queixo e olhar com ferocidade.
– Não. Eu não sei de nada. Quantas vezes eu vou...
– Quantas vezes necessárias. Eu menti por você quando àqueles adolescentes estranhos apareceram aqui. Eu menti para a polícia dizendo que estava com você quando ele veio aqui. Eu menti para mim, por te cobrir. Então me diga a verdade. Você sabe onde ele foi, onde ele está? Porque não diz a verdade?
– Estou dizendo a...
– Não, não está. Eu conheço todas as suas expressões de mentira, conheço a forma que se comporta quando não quer dizer alguma coisa. Sei exatamente o que você usa para suas omissões e te digo: não funcionam comigo. O seu pai é uma pessoa fácil, eu não. Eu soube quando você pegou dinheiro na carteira dele para ir ao cinema com esse rapaz. Disse que não, sorriu olhando para o lado com uma carinha gentil. Eu soube quando você foi para a praia no ano passado "com esse garoto" e disse que ficou em casa. Você fica mexendo as mãos, coçando-as, como está fazendo agora. Você pensa que me engana, garota. Mas não engana. Eu conheço muito bem a filha que fiz.
– Talvez eu tenha puxado você!
Mieko a olha com raiva, pensa em lhe dar um tapa, mas respira, pensa, reflete, lembra dos seus momentos quando era adolescente, sabe que, em parte, ela tem razão. Mieko deu muito trabalho para sua família fugindo inúmeras vezes de casa por serem descentes de pessoas que saíram de seu país tentando uma vida melhor, mas os primeiros acabaram passando fome, alguns morreram, e só três gerações depois eles conseguiram um negócio lucrativo com uma loja de eletrônicos no centro do Rio de Janeiro, Uruguaiana. Ela, hoje, tem uma vida melhor do que passou na infância, mas procurou relações com homens ricos, só se relacionava com homens que pudessem banca-la, e quase viajou com um homem que lhe prometeu amor eterno – o único pobre que se relacionou. Mas ele faleceu dois dias antes do dia que marcaram. Nunca souberam o que aconteceu com ele, o que soube, dias depois, é que ele havia sido enforcado e morto por um segurança de Supermercado, que jurou que ele havia resistido, que havia roubado e era perigoso, mas as câmeras mostraram que ele, além de não resistir e não roubar nada, não teve chances de se defender, pois foi espancado e morto sufocado. Após esse ocorrido, Mieko se fechou na sua ideia primaria: se relacionar apenas com brancos ricos.
– Sim, pode ser. E por isso quero sua resposta verdadeira.
– Porque isso agora, isso foi a meses...
– Quatro meses que o rapaz desapareceu.
– Porque está ligando para isso, nunca gostou dele mesmo.
– Não, gostava dele. Eu e muito menos o seu pai. Mas lembro bem que você morria de amores por ele. E agora que ele desapareceu você está ai, sem fazer nada. Não parece que está afim de saber o seu paradeiro.
– Claro que não. – Pela primeira vez na conversa olha diretamente nos olhos da mãe. – Ele me deu um pé na bunda. Eu não quero saber de nada dele. Já falei, ele veio aqui, pegou suas coisas e saiu, fim.
– Carla. Àquela menina, irmã dele veio aqui decidida. Os amigos dela disseram que ele veio aqui, eu menti dizendo que eu estava aqui e tudo aconteceu como descreveu. Dias depois a polícia veio aqui e contei a mesma história. E agora, quatro meses depois a polícia volta aqui. Por que encontraram, prenderam um suspeito que jurou tê-lo visto vir para cá. Pior, alegou que sabia que ele veio e por isso, ele, esse bandido foi a casa desse menino por estar desprotegida para roubar. Você está me dizendo que não sabe de nada, mas o tempo está fechando para você, e não quero ser cúmplice de uma adolescente mentirosa. Já contei mentiras demais, mas já estou metida nisso. Se há alguma coisa que eu tenha que saber, diga agora.
– Mãe, eu...
– Esse é o mês do seu aniversário. Me diz, há o que comemorar? Você pensa em fazer uma festa? Sabendo que o seu ex-namorado, a pessoa que morria de amores está desaparecida? Me diz?
Carla a encara, seus olhos estão pensativos, mas não com remorso, não com raiva, não como Mieko esperava que tivessem.
– Não vejo porquê não comemorar. O aniversário é meu. É o meu momento. Não dele. Quem tem que estar de luto é a família dele, não eu.
– Luto? O que quer dizer?
– Luto sim, porque ele sumiu, não é?
– Luto é para quem morre e você sabe disso.
– Foi maneira de dizer. Disse isso porque ele sumiu, como você disse, a quatro meses. Deve estar morto.
– E você fala assim, tranquila? E o seu amor por ele?
– Amor vai e vem. Sou nova, bonita. Pretendentes é o que não falta. E por falar nisso, vou trazer um aqui no meu aniversário.
– Não, não vai. Eu sei de quem está falando, e não queremos ele aqui.
– Não queremos? Como assim?
– Você, ao que parece, não sabe quem é esse menino.
– Sim, eu sei. Ele me contou.
– Sabe? – Mieko se espanta, pensa e semicerra os olhos.
– Ele é o meu primo. Ele me falou um tempo atrás.
– Então sabe o porquê não o queremos aqui. Sabe que não pode se relacionar com ele.
– Eu sei que sou mulher, e ele é homem. Posso fazer o que quiser com a minha vida e minha buceta.
Tapa na cara. A palavra baixa que Carla fala deixa Mieko nervosa e impaciente, e sua mão vai automática em sua face.
– Porque me bateu, você nunca...
– Você está se tornando uma pessoa repugnante. Merece muito mais que isso.
– Eu... eu... – pensa em não dizer nada, mas não consegue. – Sou o seu reflexo mãezinha. Talvez quando eu estiver velha como você, eu ache um homem rico para me sustentar. Aí sim eu serei uma pessoa melhor. Enquanto isso vou vadiando por aí.
Outro tapa, e mais outro e outro... Mieko perde totalmente o controle e começa a bater na filha de mãos fechadas. Camila e Carem ouvem a gritaria, o choro de sua irmã e correm para socorre-la. Encontram a cena espantosa de Mieko em cima da filha batendo sem parar e Carla sangrando e chorando pedindo socorro.
– Mãe, para. – Grita Carem da porta. Camila corre e tira sua mãe de cima da irmã.
– Você não é minha filha. Você é outra coisa, você...
– Sou sim, sua velha puta. Eu sou como você, e você sabe disso.
Mieko estava com ódio, sabia que Carla dizia meias verdades e isso a feria mais. Apesar de Camila e Carem estarem lhe segurando, Mieko ainda consegue dar alguns pontapés em sua filha que corre até o banheiro e se tranca.
– Essa menina é um erro, um erro... ela, ela é um demônio.
Ainda com os braços de suas filhas sobre o seu corpo, Mieko deixa o seu corpo cair no chão, chora, põe as mãos no rosto, sente dores, olha as mãos, estão sangrando, as palmas estão vermelhas pela força que bateu e também do sangue de sua filha. Estão tremendo, suas lágrimas batem nas suas palmas, olha o outro lado das mãos, o sangue é mais intenso, mas não doem tanto.
– Eu me encontrei. Mas foi ela que encontrou a rota do meu passado.

O QUE NOS FALTA ...🔞Where stories live. Discover now