ANCESTRALIDADE

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A lua arriscava se esconder através das nuvens. A noite estava abafada, mas um frescor lutava para sair em forma de brisa. Três dias passados da tragédia com seu tio e nenhuma resposta mais do seu irmão. Tinham fé que o maníaco do Gilvan teria notícias de Cleiton, mas ele não sabia de nada.
Luna começou a sentir-se despida da vida. Sua mãe diminuiu a carga horária no trabalho para passar mais tempo em casa, seu pai fez o mesmo, assim ambos revezavam para ficar com ela o máximo de tempo. Luna não gostou da atitude dos pais. Adorou saber que eles estavam preocupados com sua segurança, mas o que passou, passou e atenção nenhuma iria apagar a noite pavorosa que teve com o seu tio pedófilo. E não queria ser um fardo. O desaparecimento do seu irmão já era algo grande demais para qualquer um da residência dos Santos, ser mais um problema a deixava a deriva.
Por mais estranho que possa parecer, não era o tio asqueroso que estava pairando sua mente nesta noite. Luna estava com a mente em um estado de inércia. Vez ou outra um pensamento negativo queria pular as barreiras de sua razão, mas não fazia morada.
Já passava das dezenove horas quando Luna levantou-se do sofá da sala e resolveu dar uma volta.
– Mas filha, já está tarde. Vamos ver algum filme, novela... o que quer assistir?
– Mãe, eu to bem. – O olhar de Luna não estava com medo, receio, pavor ou qualquer pensamento negativo. Apesar das poucas palavras, Maria enxergou uma segurança, uma confiança que ela, não teve quando passou por uma situação similar a sua filha. – Fique tranquila. Só vou dar uma volta na rua. Além do mais, está cedo. O perigo já está enjaulado.
Vendo a filha calçar os seus chinelos e sair com o cabelo amarrado, short e blusa larga, Maria Maria se recordou ainda mais de sua adolescência. Sentiu orgulho de sua filha, na mesma proporção que sentiu vergonha por não ter sido tão forte quanto ela está sendo com tudo que vinha acontecendo com sua família. Lembrou-se que o seu refugio foi chorar calada em seu quarto, dedicar cada pensamento aos ensinos bíblicos para fugir da dura de sua mãe. Luna não era como ela. Ela permitiu, indiretamente, que seu agressor lhe domasse, fizesse o que queria fazer. Já Luna lutou, esbravejou, se impôs perante o maníaco que a quis como troféu. Não. Sua filha não teria o mesmo destino indigno que ela. Ela não seria mais uma nas estatísticas. Não irá se tornar a mulher frágil dos filmes de princesas. Ela poderia trilhar um novo rumo. Quebrar o tear que cantava uma doce música lhe hipnotizando a tocar em sua ponta para envenenar o seu coração.
Luna já estava no portão quando Maria permitiu que as lágrimas alcançassem sua face. Maria não chorava apenas por orgulho da filha. Chorava por ela, pelo ciclo quebrado, por saber que o tarado estava preso, por saber que sua filha não seria escrava de uma decisão machista dos pais. As lágrimas tinham muitos sentimentos, tantos que Maria adormeceu fraca com as lágrimas quentes que encharcavam o sofá e não se recorda do momento que Luna retornou.
Mesmo não tendo dito a mãe onde iria, Luna sentia que devia ir a um lugar específico. Sua rua é vista como a rua mais peculiar do bairro Irajá, pois o final dela há duas passagens: uma vai para a pista principal, e a outra vai para a casa da casa e centro Umbandista da Dona Ivone. Só quem mora no bairro sabe distinguir a saída principal, para sua casa. Pois a entrada é tão larga como a pista e só há portão a quase dez metros da entrada. Constantemente pessoas de outros bairros, ou carros desconhecidos vão parar no pequeno sítio da Mãe Ivone.
Para a surpresa de Luna, ao chegar no final da rua, já avistara dona Ivone sentada em uma cadeira antiga de madeiras. O olhar sereno, cansado e feliz de Dona Ivone lhe cativou, deferindo então um sorriso simpático para a simpática idosa de cabelos completamente brancos.
– Pequena Luna, o seu sorriso continua belo e cativante.
– Obrigada Dona Ivone. A senhora sempre consegue me deixar sorridente.
– O sorriso vem da alma menina, eu apenas estou aqui para abrir alguns olhos fechados para o mundo.
– E os meus estão fechados?
– Ah, não, menina, não estão. Por isso sorriu. Você não precisa que eu lhe faça nada. Você sente, não sente?
– Sinto?
– Sim, sente. Você sabia que sorriria ao me encontrar, não sabia?
– Não sei dizer! Eu sabia, sei que a sua presença me acalma. Isso não sei explicar.
– Sobre isso que estou lhe falando. Você sente. Me diz, menina sorridente, porque veio a minha casa? Você parece já decidida a ter a vida que escolher.
– Eu? Não sei se já decidi minha vida. Eu queria ir a algum lugar que não fosse a minha casa.
– E veio para cá. O final da rua, um local longe de sua residência.
– Talvez eu só quisesse andar. Caminhar para espairecer.
– Sim, andar, caminhar para a resposta concreta lhe alcançar.
– Eu achei que... aconteceu algumas coisas ruins na minha vida. Eu não me sinto destruída. Pelo contrário. Me sinto forte. Creio que um pouco devaneando, mas me sinto forte. Isso é normal, na minha idade?
– Não é justo uma menina virar mulher antes do tempo. Não é justo qualquer pessoa não deter as escolhas de sua vida. Mas tudo há um por quê. Você é uma pessoa de luz. Você é dona do seu destino. Por isso está se sentindo assim. Cuidado, minha filha, para não tropeçar na confiança. O mar é belo, mas se afogar é mais provável do que nadar até a terra firme. Você vai trilhar seu destino, faça dele o que achar melhor.
– E o que é esse melhor? Como vou saber?
– Eu poderia dizer-lhe que quando chegar a hora saberá, mas estaria mentindo. Não existe hora certa, não existe o botão da certeza. Mas existe a decisão. Você tomará a decisão do caminho. Talvez te levem ao fundo do poço, e talvez te levem ao céu. Mas fique firme, não se arrependa de nada. Se cair, se levante, continue. O principal é ter em mente que você é a dona do seu destino. Nenhuma mão alheia pode tirar isso de você, se você lembrar que está onde desejou estar.
Luna fico uns minutos refletindo sobre o que ouvira. Muitas palavras complexas, e muitas palavras que faziam sentido. A sua frente, Dona Ivone sorria sem esboçar os dentes. Seu olhar caloroso lhe fitava como um cobertor em noites frias. Ao redor, viu um cachorro de rua latir para o nada; talvez fosse algum inseto. Olhou as pessoas que passavam, olhou crianças brincando nas calçadas de suas casas e voltou a fitar Don Ivone.
– Nada disso tem respostas.
– Porque enxergas com os olhos.
– Eu queria conhecer sua casa...
– Agora não. Ainda não está na hora de você entrar. Mas em breve.
– Obrigada. A senhora tinha razão. Eu já sabia o que queria ao vir aqui.
Sorrindo, Luna chegou mais perto de Mãe Ivone, pegou sua mão direita, sentiu as marcas da idade desenhadas em formas de calos. Depois beijou a traseira da mão negra enrugada, após, encostou sua testa de olhos fechados.
— Sua bênção.
— Que o criador lhe proteja, minha menina!

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