EU SOU, PORQUE SOMOS

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Toni, em devaneio, despertou com o balançar de um carro. Olhou ao redor, viu um homem, mas não identificou, depois apagou novamente e quando recobrou a consciência estava na cama de um hospital com a sua mãe de um lado da cama chorando, sentada em uma cadeira. Do outro lado o seu pai não conseguia parar, andava de um lado a outro com uma expressão de raiva e preocupação.
- Ma... mã... mãe...
A voz rouca e baixa de Toni deu esperanças aos seus pais que voltaram-se para o jovem com uma triste felicidade.
- Não diga nada, meu filho, calma, apenas respire, por favor, respire.
No esforço para falar e respirar, Toni perdeu a consciência e desmaiou.
O adolescente teve uma costela quebrada e outra fraturada. Inúmeros hematomas em diversas partes do corpo, em evidência: cabeça, costas, pernas e barriga. Nariz quebrado e um pequeno coágulo no cérebro. Por sorte, nenhuma sequela eterna, no entanto, tem que, a partir deste momento, evitar qualquer pequena batida na cabeça, mais especificamente na nuca.
No dia seguinte, Toni despertou estava mais sóbrio, mas estava proibido, pelo médico, de falar ou fazer esforços. Seu despertar se veio pelo cochichar de sua família com outra pessoa que ele não estava conseguindo identificar. Seus olhos estavam inchados e sua visão turva, então aguçou os ouvidos.
- Não estou pedindo que se acalmem, apenas que conversem com Toni.
Disse a voz da pessoa de costas. Toni conhecia essa voz, no entanto, não quis acreditar, pois essa pessoa não lhe tem simpatia.
- E o que quer que façamos? Nos calemos perante esse ato de ódio e preconceito?
Essa voz segura e relutante era de seu pai, o homem que Toni sente mais orgulho no mundo. E se ele está dessa forma, é por que já sabe o que aconteceu e está buscando respostas.
- Antônio, talvez ele esteja certo, não podemos sair por aí agindo sem pensar.
Toni ama a sua mãe e sem dúvidas é a verdadeira mulher de sua vida, mas sabe o quão conivente ela é, quando o assunto é luta por direitos raciais.
- Ângela, por favor. O que faz de sua vida não me diz mais respeito e entendi o meu lugar. Mas quando o assunto é racismo, você jamais entenderá. E agora é racismo contra o meu filho, meu filho preto e pobre em uma escola branca na zona sul. Não, eu quero justiça.
Antônio acabou falando mais alto do que devia e olhou para o seu filho, imaginando tê-lo acordado, mas quando virou-se para ele, Toni estava sorrindo e chorando ao mesmo tempo. Antônio e Ângela correram para socorrerem seu filho. Toni tentou falar, mas estava emocionado e dolorido, mas fez todo esforço que pôde para prosseguir.
- Por favor, me deixem falar. - Sua voz fraca e repleta de baba, não o impediu de prosseguir. - Pai, eu sinto muito orgulho de ser seu filho. Mas, vamos ser sinceros. Estamos no Brasil. Somos uma família preta e pobre contra o sistema branco que manda no mundo. Vamos fazer barulho, vamos conseguir seguidores nas redes sociais. Mas, vai passar.
- Filho, eu não posso...
- Pai. Por favor. A sua luta é para que eu me forme, seja alguém, que eu possa, lá na frente, dizer que toda essa dor valeu a pena. Então me deixe seguir. Eu prometo, que serei muito mais que qualquer um deles. Mas para isso, preciso apanhar calado hoje.
Os pensamentos de Antônio confluíram. Era uma mistura de orgulho, vergonha, ódio, amor... eram tantas coisas que ele só conseguiu chorar e abraçar como pôde o filho enfermo.
A terceira pessoa na sala que também se emocionara com as palavras de Toni, era Jorge, o professor de educação física. Por uns minutos, ele saiu da sala do hospital, bebeu água, depois pegou dois copos descartáveis e levou água para os pais de Toni. Até então, Toni não estava entendendo a presença deste, que, após notar a baixa na comoção, se prontificou a tecer umas palavras.
- Toni, eu sinto muito que tenha que passar por tudo isso para mudar o seu destino na vida. - Toni se precipitou para falar, mas Jorge o impediu. - Não diga nada, descanse. Eu vi quando os garotos estavam te agredindo e corri, buzinei para assustá-los. Depois te peguei e te trouxe para cá. E já deixei claro para a escola que eles pagarão, pois o que aconteceu, aconteceu nos arredores da escola. Eu me sinto culpado por ter te obrigado a ir a escola, mas quero lhe falar o porquê fiz isso. E se poder me perdoar, sairei daqui com parte desse peso mais leve. Você já passou com honrarias e méritos no colégio, com 100% de aproveitamento em todas as matérias, incluindo educação física.
Nesse momento, Toni ficou confuso, pois o professor, dias atrás, havia lhe chamado de preguiçoso e disse que suas notas eram baixas.
- A aula de educação física na escola, não é para formar atletas. É para mostrar os alunos a importância de terem uma atividade física regular e o quanto isso pode melhorar o desempenho na vida. Há alunos que se destacam? Sim, como em todas as matérias, mas não se obriga um pássaro a nadar se ele nasceu para voar. E você - aproxima -se do rapaz, sua mãe cede o seu lugar ao lado -, meu rapaz, nasceu para voar, vai voar muito alto. Eu não tenho dúvidas disso. Eu não te obrigava a fazer as aulas por que me divertia com a sua dificuldade. Eu fazia isso porque queria que entendesse que sempre haverá barreiras pelo caminho. Haverá coisas que tentarão te provar que você não é capaz de alcançar. Haverá coisas que irão lhe cansar ao extremo para que desista do caminho que está traçando.
Jorge faz uma pausa, está segurando o máximo que pôde a sua emoção. Antônio pega uma poltrona no canto da sala e põe para ele sentar. Ele agradece e volta com suas palavras.
- Eu lutei para ser o que sou, e não tenho metade da sua inteligência. Mas, acima de tudo, não tenho metade dessa sua garra. Que mesmo com os alunos te enchendo o saco - sim eu via, e já repreendi muitos deles, mesmo com as suas limitações nos esportes. Você estava lá, de cabeça erguida cumprido o seu caminho. Entenda filho, você terá que enfrentar o Deus deles, para mostrar o seu. E isso, é uma luta sua. Eu, um mês atrás, conversei com os seus pais. Liguei e marquei com um por um. Você já conseguiu a sua carta de recomendação no começo desse mês. A única coisa que pedi, aos seus pais e a escola. Era que me deixassem continuar por mais um mês com você. Não para te humilhar, mas para ver até onde você iria, mesmo sabendo que a sua mente é que rege seus estudos. Pois eu sei, e todos nessa sala sabem, que você é o cara mais inteligente daqui e de muitos lugares.
Todos sorriram, e brincaram com Toni, mas o garoto ainda estava confuso do porquê essa prova.
- Entenda, treine o seu corpo e sua mente. Assim ouviremos falar de sua grande mente por muitos anos. E me perdoe. Eu quis te dar uma lição, lhe fazendo ir a escola, mas hoje, nessa sala de hospital, é você que me ensina a ser uma pessoa melhor.
- Me desculpe professor, mas, tudo isso porque queria me dar uma lição?
- Não. Tudo isso, porque não quero que seja mais ou menos, quero que seja o melhor em tudo. E mostre para esses riquinhos racistas a nossa força e inteligência. Infelizmente temos que ser os melhores para provamos que somos dignos. Então seja fantástico, e os deixe impossibilitados de negar sua capacidade.
Jorge ficou mais algum tempo, conversou sobre a escola, sobre o quanto admirava sua dedicação e depois de um tempo, também conversado com os pais de Toni, e se foi.
Antônio segurou muito os seus pensamentos quando foi no colégio do filho. Sua mente estava confusa, mas lembrou das palavras de Toni e recordou que o objetivo de sua vida, era dar o melhor para ele. Como Jorge havia dito, a escola pagaria pelo hospital e pagou, mas Antônio, apesar de tentar se acalmar, falou sobre o perigo da vida futura do filho e o que àquilo poderia acarretar em sua mente. A escola se desculpou, lhe disse que não passou de um mau entendido e coisa de crianças. Mas, que tomaria a devida providência com os alunos responsáveis. Antônio sabia que nada ia acontecer, e não aconteceu. Mas a escola pagou o hospital e, fora dos registros da lei, lhes pagaram uma indenização; Antônio sabia o que significava essa verba "um cala a boca". Antônio não queria aceitar, mas Ângela lhe convenceu que seria o melhor para o filho. Assim, na faculdade, eles não precisariam se preocupar com nada.
Os pais dos alunos foram informados, mas nada fizeram. A escola seguiu normal ignorando a tragédia, mas fizeram questão de mandar uma placa oficial, registrada pelo prefeito da cidade. Dizendo que Toni foi o melhor aluno que já passou pela escola. Disseram que na escola há uma igual com uma foto do rapaz no mural de troféus; no entanto, Toni e sua família jamais retornaram a escola para checar a veracidade desse registro.

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