A NOITE AS CORUJAS NÃO DORMEM

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Duas horas da manhã. Uma hora e trinta minutos depois do chamado, duas viaturas policiais chegaram na casa da família Santos, um carro pequeno como de passeio e um maior para pôr os presos. Os olhares de tédio dos quatro policiais mostraram a satisfação em estar naquele local, àquele horário. A noite não estava fresca, não estava fria. Estava com um calor diferenciado que completava com as expressões negativas das pessoas em questão. O abafar da noite veio para mostrar a situação aos olhares das janelas dos vizinhos curiosos que saíram as janelas para verem o porquê que a sirene policial gritava na matina. Ninguém saíra de sua residência, nenhuma pessoa moradora de bairro pobre, ousa estabelecer contato direto com um caso que não faz ideia do que se trata. Seria tolice ir de encontro a possíveis assassinos e, caso estivessem em condições de retorno, fora da prisão, seria possível atingir quem o viu, ou o denunciou. Ou pior, o tal acusado pensar que foi denunciado por alguém, e esse tal alguém sabe que em breve, pela justiça brasileira ele irá sair e, quem sabe, poderá se vingar. Por esta razão, por medo de suas vidas serem tiradas, medo de sua família ser prejudicada mortalmente, as bocas permanecem fechadas, mas os olhos atentos em cortinas semifechadas, portões entreabertos não passam despercebidos. Como todos sabem em qualquer comunidade, favela ou mesmo um bairro de baixa renda: X-9 morre cedo.
De dentro da casa da família Santos, sai um individuo algemado, sendo carrega por dois policiais. Ele está sangrando, anda com dificuldades, pois não consegue enxergar o caminho a sua frente. Atrás, com outro policial, Gilberto conversa um dos policiais. Este aparenta ter mais de cinqueta anos, barriga avantajada, cabelo branco e tom de pele morena escura. Gilberto explica a situação e diz que vai a delegacia com sua filha.
– Entendo, entendo – assente o policial. O tom simpático de suas palavras faz Gilberto repensar sua decisão. — Mas o senhor quer mesmo fazer isso? Expor a sua filha a toda essa coisa de delegacia, fazer B.O., terá que fazer exames, essas coisas chatas e burocráticas que o senhor deve saber.
– Não estou entendendo — Gilberto levanta a voz, se da conta que está falando com uma autorida e falar em tom ameno. — Minha filha foi abusada e é menor de idade, eu preciso fazer isso por ela, por minha família, por...
– Entendo, entendo – calmo, põe a mão no ombro de Gilberto –, o senhor quer fazer justiça pela lei. É o certo, sei disso. Mas sabe, vou lhe confessar uma coisa: não existe uma raça pior do que estuprador, e ainda de menor de idade... — balança a cabeça e vira-se para Gilberto com um olhar reproador — isso me da náusea. Mas estamos no Brasil, o sistema judiciário, penitenciário não funciona... me entenda senhor...
– Gilberto.
– Isso, Gilberto. Senhor Gilberto. Eu quero que o senhor tenha justiça, mas isso pode levar dias. Ele é um escroto que merece coisa pior que grades. O senhor não concorda? Eu falo como pai, tenho duas meninas e um menino mais velho que está prestes a ir para o exército. Se isso acontecesse com as minhas menininhas... Ah, meu senhor, meu senhor... Eu surtaria. O senhor deu uma boa coça nele, gostei, gostei disso. O senhor tem fibra. E sua família. O senhor deve ter orgulho dela, uma menina esperta, não permitir ser agredida. Se minhas meninas tiverem metade dessa garra... Senhor, meu senhor, é muito orgulho. Meu trabalho como pai deu certo. Mas voltando. Essa coisa aí, vai sair mais cedo ou mais tarde da prisão, pode voltar ao seu recinto e sabe de uma coisa, o sistema vai protege-lo, caso o senhor venha a mata-lo, ou ele vir fazer vingança. E se ele alegar que antes, foi induzido a isso, que a cadeia o fez mal, que ele foi vítima do sistema... Senhor, meu senhor! Isso acontece muito. Por isso há muitos casos de homens que batem em mulher. Nada acontece com eles. Pelo contrário, são defendidos. Eu quero ser justo, uma justiça que não há nesse país. Eu sou do tipo Lei de Talião...
– O quê? Que lei é essa?
– Explico, senhor, meu senhor. Eu sou muito devoto da bíblia, mas não sou cristão. Isso cabe a minha esposa, e por isso discutimos muito, muito mesmo, meu senhor! Minha mukher quase manda em mim, quase — sorri ironicamente lembrando da esposa. – Essa é a lei mais famosa do mundo. O senhor deve conhecer pelo termo "olho por olho, dente por dente". O mal que alguém faz a outro, deve retornar a este, através de um castigo imposto, na proporção daquele mal. O caso da sua filha me lembra muito um caso bíblico, a diferença que aqui, pelo que parece e me relatou, foi o seu filho que desapareceu. Há a passagem que envolve uma jovem de nome Dina, filha de Jacó, que foi raptada e estuprada por Siquém. Os irmãos de Dina, Simeão e Levi, para reparar o dano, mataram o violador, o pai dele e todos os varões da cidade, fazendo dos filhos, cativos. Gênesis 34, 1-31. Eu estou lhe oferecendo isso: Eu e meu amigo ali, o da viatura pequena, seremos esses irmãos. Estamos cansado, meu senhor. Estamos dobrando dois meses seguidos por que estamos sem dinheiro, e hoje, a essa hora da matina recebemos essa notícia desse va-ga-bun-do estuprador. Será fácil para nós. Um prato cheio, devo dizer. Ele merece a lei que Moises tanto disseminou. Senhor, meu senhor... Entenda, isso é bíblico. Não lhe custará nada e ainda terá a verdadeira justiça. "Se houver acidente fatal, darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, contusão por contusão" (Ex 21, 23-25). Entende senhor?
– Eu entendo policial. E está certo, corretíssimo. Não sou um poço de sabedoria, mas lembro de algumas palavras da bíblia dos tempos de escola dominical, mas... há também perdão e... Ah, isso não importa. Não quero te contrariar e não acho que está errado. É que minha filha fez o que achou certo, porque ainda acredita no que é certo. Eu... A meses atrás acho que aceitaria sua oferta, mas acontecimentos recentes me mostraram o quanto a impunidade impera. Estou cheio disso, cansado. Não como vocês, longe de mim falar do trabalho dos senhores. Mas estou cansado mentalmente, emocionalmente. Meu filho desapareceu, talvez seja ele e talvez não, o raptor. Sei que tenho sim orgulho da minha menina, como o senhor falou, mas também quero dar-lhe bons exemplos. E se ele for o raptor do meu filho Cleiton, ele precisa falar, ser julgado por isso. Senhor, se ele for morto, isso pode morrer com ele. E se o meu filho estiver... — dá uma pequena pausa — morto, eu preciso, ao menos, enterrar. Devo isso a minha família.
– Entendo, entendo... Bom, isso vai durar – pensa, olha o individuo no camburão, seu amigo está tão cansado quanto ele, ambos com olhos vermelhos, pois dormiam minutos antes do chamado. Dá um suspiro, pisca com dificuldades. – Então vamos lá. Sua filha já se vestiu adequadamente?
– Vou ver – Luna aparece –. Olha ela aqui. Vamos fi...
– Sim, quero ir agora.
Gilberto e Luna vão no carro do policial que Gilberto conversava, enquanto Gilvan no carro de presos com outros dois policiais.
O policial estava certo, tudo durou a manhã inteira. Após o boletim de ocorrência, Luna fez corpo de delito. Os exames foram fatigantes, enfadonhos, mas ela não bocejou, não esbravejou. Fez tudo quieta, calada e com um olhar mórbido que se encontrava com as paredes, teto, chão... Mas nenhum olhar recíproco.

O QUE NOS FALTA ...🔞Where stories live. Discover now