RECIPROCIDADE

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Na sala de estar, Ana pôs uma música para tocar da banda Soul de Brasileiro, um trio com dois homens e uma mulher, todos lindos e negros, que inclusive, um dos cantores, além de ser o seu favorito, já foi seu flerte. Gilberto se espantou com a qualidade do som, pois parecia uma mistura de soul music, jazz e outras referências a cultura musical negra.
- Que musica boa! Eu já havia ouvido algo desse grupo, mas nunca tinha parado para me ligar.
- Ah, eu amo muito. Eles têm vozes lindas e, ouso dizer, estão entre os melhores cantores do Brasil.
- É... de certo são muitas que me levam a refletir sobre minha vida. - Dá uma pausa. Umas das músicas que começa a tocar é sensível e forte. - Mas eu não quero passar a noite falando de mim e dos meus problemas. Fala um pouco da sua vida.
- Minhas histórias passadas são grandes e dramáticas demais falar fora da sala de terapia ou para falar sóbria.
- Então... bebamos.
Gilberto sugerindo tomar uma bebida alcoólica foi interessante na visão de Ana que fez uma careta divertida e sorriu, mas não pestanejou. Pegou uma das garrafas de vinho que havia comprado para a ocasião, abriu, serviu Gilberto e, após um brinde sem palavras, mas com olhares trocados, Ana tomou de uma vez e em seguida pôs novamente.
- Que sede, hein! - Espantado, não havia bebido um terço do seu vinho.
- Tem certeza que quer me ouvir? - Soluça, respira e o fita - Eu... pensei que queria apenas falar hoje? E tudo bem, me preparei para isso.
- Sim, quero. Quero trocar frases e histórias. Preciso também me distanciar um pouco do que estou vivendo. - Vinho, álcool... olhando para o líquido de tons vermelhos, se pergunta se o seu filho sofrera, se havia sangrado, se estava bem e porque ele não estava pelas ruas procurando notícias sobre ele. Estaria ele traindo a confiança da família?
- Que assim seja - toma quase tudo da segunda taça. Pensa em pôr mais, mas sente que está sendo educada, então recolhe as mãos que já ia em direção a garrafa. - Mas não se arrependa. - Gilberto, notando que ela queria mais incentivo alcoólico, a serve - Essa história é... obrigada. Talvez, maior que a anterior do pai do meu filho.
- Sim, quero. E quero entender melhor como você é essa pessoa... - ia dizer "mulher forte" mas se recordou que ela odeia essa frase - que escolheu ser solteira. Eu... não sei se consigo... - Gilberto se sentia incapaz de ser qualquer coisa, estava sentindo uma queimação no peito, e não era por conta do álcool.
- É, homens! - toma um gole e sorri com ironia.
Ia beber, mas a frase o atenta. - O que quer dizer?
- Melhor não comentar - se arrepende do que disse, mas sabe que ele deveria ouvir. - Não quero julgar. Cada um sabe e toma conta de sua vida.
- Pode dizer. - Enfim bebe e termina sua taça de vinho - Acho que já sei do que se refere, mas... Me desculpe. Acho que estou mais perdido do que nunca.
- Você é um caso bem diferente dos homens comuns, e ao mesmo tempo toma as mesmas decisões de todos. Está aqui, comigo, e não com sua... esposa. Você já me disse o que ela é, disso não tenho o que pensar ou falar. Mas... porque não se separa? Tudo por conta dos seus filhos?
- Eu... não sei exatamente. São tantas coisas. Princípios, religião, amor por meus filhos... Eu... disse "feliz para sempre", disse que não me separaria. Eu... não sei. Quando criança eu havia jurado não ser como o meu pai que bebia demais, que... agredia a minha mãe fisicamente e psicologicamente. Ele nunca a machucou gravemente. Eu não entendia o porquê ela não se separava, dizia que tinha fé em Deus, que o Senhor iria ajudar, que, mesmo ele sendo uma pessoa ruim, quando ele estava sóbrio, ele era bom. Ela acreditava firmemente que a bebida era uma força mundana que o dominava. Se foi... Deus, não sei dizer. Hoje, ele não põe um gole de álcool na boca, mas ele já cometeu muitas coisas ruins. Ele ficava na rua bebendo até tarde, tinha outra mulher pela rua, até hoje acho que ele tem filhos perdidos nesse mundo, mas nunca disse nada. Minha família é muito estranha. O meu irmão estava indo pelo mesmo rumo. Eu acho que ele está melhor agora, que tomou tenência, mas... ele também... - toma um gole, respira e se cala.
- Não quer falar? Tudo bem. Eu fui invasiva demais. Você está aqui, comigo, não tenho essa liberdade.
- Tem sim. Estou aqui, com você e te dei essa liberdade. É que... é uma história muito pesada. Não esperava falar dessas coisas...
- Você pensou em trepar e ir embora, correto?
- Eu...
- Gil. Pare com isso. Já sabe o quão direta sou. Não estou nem aí se você me vê como uma mulher vadia, ou virgem. Você me deu a liberdade de falar, então te digo o mesmo. Te dou a liberdade de falar o que pensa sobre mim. Não sei se vamos discutir, brigar, sair no braço. Mas eu prefiro a sua verdade. Me cansei de mentiras. Prefiro um cara que diga na minha cara que sou uma vagabunda, do que um que diz que sou a melhor mulher do mundo e por trás, ele me humilha com outras mulheres, me bate quando sente que não sou dona dele, me xinga quando está com o ego ferido... Eu sou o que você está vendo e não vou me esconder de nada. E sinceramente, não sei se acreditou quando falei que não transei com nenhum homem após você...
- Eu acreditei...
- Quer saber? Isso não me importa. Não mais. Não agora. Não nesse momento. Estou disposta a ter essa estranha relação com você. Sabe por quê? Porque quero. Sei que não disse isso, mas você jamais irá me dominar, mandar em mim... Eu demorei muito para me tornar a mulher que vanglorio no espelho. Ninguém vai quebrar isso. Por isso, repito. Você pode dizer o que quiser de mim. Eu quero que diga o que pensa. E não tenha medo das consequências. Se vamos discutir ou brigar, que seja agora. Se for para nunca mais nos vermos, que seja agora. Quero a sua intensidade hoje. Não quero ir morrendo aos poucos. Não mais.
- Você é incrível!
- E aí, vai me beijar - sorri. Gilberto a beija.
Ao termino do beijo, ambos tomam mais um gole.
- Eu estava certo.
- Com o quê?
- Eu "precisava" vir aqui. A verdade pode ser a coisa mais dolorosa a se ouvir. Mas... é também a coisa mais necessária.
- E então, vai continuar a falar do seu irmão?
- Não. Isso é um assunto para outro dia. Diz, que tal outra garrafa?

O QUE NOS FALTA ...🔞Where stories live. Discover now