GOLES NOTURNO

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Se recostando no sofá, Ana suspira com palavras que lhe fogem. – Eu queria ser forte como dizem.
– O que disse?
– Nada. Você deve pensar que, já época do nascimento do meu filho eu tomei vergonha na cara, segui um caminho lindo e todas essas coisas de autoajuda? Pois se engana. – Volta a ponta do sofá, toma o último gole do vinho na taça, põe mais, toma levemente mais um pouco. – Vamos lá. Foram muitos tapas na cara para a alienação da princesa em perigo sair do meu sangue. Ainda tentei outras relações e isso estava me destruindo. E o pior, dando um péssimo exemplo para o meu filho.
Passei por humilhantes tentativas de afeto, apego nessa coisa de que eu tinha que ter um marido. Tinha que ter um homem para me sustentar, pagar minhas contas... isso também por influência familiar. Esse incentivo ignorante de ter que ter um casamento estável, uma relação concreta: homem e mulher – isso é uma coisa péssima! Pois se é um autoflagelar, uma culpa por não ter um alguém... Essa coisa podre gera depressão, desamor, uma sofreguidão onde você é a culpada por existir.
– Eu nunca vi dessa forma, essas palavras, mas... vejo um resumo da minha vida em suas palavras.
– Gil, eu comi muito pão que dizem que o diabo amassa, até notar que eu que era esse demônio esmagador. Pois eu, somente eu podia sair dessa situação. Parar de me culpar, culpar o mundo, culpar decisões de outras pessoas e dizer que todas as pessoas ao redor são tóxicas e que eu, a coitada, era a melhor pessoa do mundo que não errava nunca. – É um processo! E que talvez nunca estejamos completamente fora. Arranjei namorado por que me indicaram: de amigas, amigo de alguém legal, que tem um amigo legal... Daí veio todo tipo de pessoa que eu permiti que entrasse. Eram caras legais por fora e por dentro eram podres. Mas também tive pessoas legais e, por conta do pensamento idiota de ser sustentada, eu os mandei embora. Sem emprego? Vagabundo, não serve. Um homem sonhador cheio de projetos, mas sem dinheiro para realizar? Fora, eu deduzia que era uma criança com uma faca na mão sem saber como cortar.
Por uns minutos, Ana parou de beber. Se recordou de um dos seus pretendentes que era uma grande pessoa, sorridente, feliz; porém parecia uma criança grande. Um artista. Um cara divertido que ela dizia que sorria de nervoso pela vida tosca de um artista frustrado e desconhecido. Lembrou-se do seu estilo curioso de uma pessoa que hora parecia a frente do seu tempo com ideias grandiosas de companhias de artes; e ora parecia atrasado com o seu cabelo Black Power, blusas de botões e um carisma estampando na face, apesar dos óculos de lentes grandes, fosse de sol ou de grau.
Uma pessoa que vivia de pequenos trabalhos, pontas em novelas, amava e fazia teatro mesmo sem grana, ele era feliz e sabia, pensou com lágrimas nas pálpebras pedindo saída. Dando mais uns goles, Ana sorriu imaginando que, talvez ele, agora, estivesse rico, famoso em algum ponto do mundo. Se julgando, entendeu que, em parte, ainda é a mulher que o pôs para fora, devido aos inúmeros momentos que ele não pôde pagar a conta do restaurante, dizia que não queria vê-la, porque ficava sem graça em não poder pagar um salgadinho de esquina, não poder pagar um cinema, mas... que deixava claro a sua sinceridade, deixava claro que a amava e se dedicava dia após dia a mostrar que podia ser melhor. Ana, não queria um homem melhor, queria um homem dentro dos padrões financeiros. E isso a fez beber toda a taça, pôr mais e beber novamente quase tudo. Sentia que o homem que veio a seguir na sua vida, foi uma penitência por que não entendeu a pureza deste que passara com sua delicadeza. E ela o repudiou com sua ignorância.
– O gatilho para a minha mudança real e significativa foi com um babaca que achava que era o meu dono. O André estava com dez anos e eu tive a – sorri, bebe mais um gole e diz com ironia – "ideia maravilhosa" de ir morar com ele. Afinal, ele tinha casa, tinha emprego... Era o homem perfeito.
Ana nota que sua taça está vazia, pega outra que havia deixado ao lado do sofá, põe na mesa, tenta abrir, está tonta. Gilberto se oferece para abrir, ela lhe dá, ele põe mais um pouco de vinho em sua taça, mesmo não tendo bebido quase nada. Serve Ana, mas ela, antes de beber, tonteia. Vê sutilmente a sala girar. Não compreende, pois o que bebeu não é metade do que está acostumada a beber. Daí olha para o relógio de formato de uma bicicleta rosa em cima da estante e vê que passou apenas quinze minutos, desde que sentaram no sofá e abriram a primeira garrafa de vinho. Já na terceira, entendeu que ela havia bebido duas garrafas sozinha e rapidamente como quem bebe água.
– Não, obrigada. Vou dar um tempo. Eu... Agora que notei que estou bebendo sem parar. Vou dar um tempinho e comer uns petiscos. E você também não comeu nada.
— Ah, que isso. Eu comi uns amendoins.
— Hummm... — o olha com malicia.
— Não entendi.
— Dizem que é afrodisíaco.
— Você acredita nisso.
— Não sei, a noite vai dizer. Vai lá na cozinha pegar outra garrafa no armário. Tem também uma lasanha na geladeira, mas não sabia que horas chegaria, não a pus no forno. Ainda bem que a fiz mais cedo. Gosta de lasanha de carne?
– Adoro lasanha até pedras. Mas que bom que falou em comida. Eu também teouxe uns petiscos. Porém, sãos os mesmo que preparou, então fiquei sem graça. Só não tem as pastas, molhos...
— Que bobeira. Põe aqui... os petiscos — sorri e pega a taça, mas não bebe. — Mas se quiser, eu vou preparar a lasanha, está com fome?
– Acabamos de sentar aqui na sala, a conversa está ótima. Não precisa ser agora.
— Tudo bem, mas por favor, me fale se estiver com... apetite.
– Sei, eu sei... – sorri com suavidade e um olhar suspeito. Se levanta.
– Você já me entendeu, não é?! Vai logo, ou posso ir e fazer a lasanha, se quiser. Estou tonta, mas não tô caindo pelas beiradas.
– Não, que isso. Está tudo bem. Vamos ir comendo essas besteiras. Depois, talvez, mais tarde, sintamos mais apetite.
– Ufa, que bom saber disso – toma mais um gole e brinda com a taça de Gilberto na mesa de centro –. Achei que hoje só seria conversa. Obrigada Deus. – Ambos sorriem.
Gilberto vai a cozinha, mas antes de retornar, ao abrir, vê pelo menos mais cinco garrafas. Se espanta, pega uma e retorna para a sala.
– Caramba, tem bastante vinho...
– Sim. Pensei que tinha te falado. Cada mês eu compro uma ou duas. Mas como não estava vindo e eu, tenho que lhe dizer, comprei pensando em beber com você. Logo, acabou acumulando. Então, senhor Gilberto, pode tratando de beber comigo. Sua taça vai dar mosca.
– Estou bebendo, mas como sabe, não sou de beber e...
– Sem desculpas. Essa noite é nossa. Você aceitou beber e eu aceitei conversar. Sem desculpinhas.
– Tudo bem, tudo bem. Vamos comer algo, pois como disse, beber sem comer está te deixando tonta.
– Debochaaadooo...

O QUE NOS FALTA ...🔞Where stories live. Discover now