PRIMEIROS PASSOS

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Ar puro. O sonho de todo enfermo prostrado em uma cama obrigado a comer um tipo de comida sem sabor. Como um bebê saindo de uma placenta, Toni sentiu-se outra pessoa ao saborear os raios fervorosos do astro rei. O tempo foi injusto, pois passou na velocidade de uma lesma, mas agora não importa mais. Um novo objetivo está nascendo com esses passos na calçada que, em breve, estará pisando na casa de sua mãe, em seu quarto, no seu mundo.
No hospital, no último segundo o professor Jorge foi lhe dar as boas vindas ao novo mundo pós caos. Jorge levou um livro e, ironicamente, uma bola de futebol. Esporte que Toni sempre fora uma negação. Jorge lhe disse que não era por conta do ocorrido que lhe deixou acamado, mas sim, para ele se lembrar do esforço que fez para chegar em um objetivo que parecia impossível. Toni não sabia se era exatamente isso que recordaria ao olhar para o círculo adornado de couro branco que não aprecia, mas saber que o seu antigo professor de educação física, que antes ele odiava, agora era seu mais novo, velho amigo, lhe fazia bem. Então, que tal olhar essa bola com essa sensação de amizade? Já o livro era perfeito. O nome do livro era Na Minha Pele, do ator e escritor Lazaro Ramos. Toni já estava determinado a buscar suas origens, dar mais oportunidades a autores negros e querer mais do que nunca saber da história esquecida de um povo que foi massacrado por um sistema capitalista branco.
Nesta segunda feira de sol, Toni teve sua mãe e seu pai, unidos para lhe ajudar com suas muletas, já que ainda manca e tem dificuldades no respirar. Seria mágico se esse encontro fosse contínuo. Contudo, era apenas no hospital. Toni estava indo para a casa de sua mãe. Antônio iria até lá, somente para ajudar, e de lá, partiria para seu recinto. Por uns minutos, àquilo lhe pareceu idiota: por que dar esperanças e depois matar? Ele podia se virar com as muletas. Já fazia uma semana que praticara no hospital, com algumas caminhadas pelo corredor e, no bom humor do médico responsável, até o deixou ir no jardim com a enfermeira Gomes.
Antônio fazia questão de ir, não iria deixar o primeiro dia do filho fora das quatro caladas paredes brancas sozinho. Era um acontecimento a se comemorar.
No decorrer dos parabéns dos pais, Jorge, Gomes e o médico responsável, Toni até que gostou do mimo que estava recebendo. Um livro da enfermeira Gomes, um livro e, para seu desdenho uma bola de futebol do seu ex-professor Jorge; uma roupa nova de sua mãe, esta que vestiu para ir-se. E do seu pai, teria uma surpresa, mas que não podia ser carregada.
Há dores que nos mostram o caminho de sentimentos eternos. Toni sentiu isso ao receber os mimos, telefonemas de amigos ao chegar em casa, todas as coisas que, como um assombro, refletia nas noites de perpétuas horas olhando para o teto. Tendo o tédio como amigo íntimo.
Na ida para a sua casa, Toni estava ansioso, imaginando o que viria de seu pai. Esperou tanto, que nada aconteceu. Antônio o deixou, lhe deu conselhos para ficar quieto, se cuidando, qualquer coisa lhe telefonar... e se foi. Ângela tirou uma semana de folga do trabalho para cuidar dele nos primeiros dias, na adaptação. Para o melhor para o filho, ela, sugeriu a Antônio que o visitasse antes ou depois do seu trabalho, que apenas ligasse antes. Antônio ficou abismado com o pedido, não esperava essa reação. Mas sentiu que, por algum motivo suspeito, ela estava mais perceptível desde segunda feira de manhã.
Estudar em uma escola que te trata como qualquer aluno é bom, mas Toni, nesta mesma segunda feira, à noite, indagava sobre como seria a sua vida se desde o começo tivesse a sua mente aguçada para os estudos além dos escolares básicos. Novamente olhando para o teto, mas agora o seu teto, ele se perguntava como seria o próximo ano. Chegou a ver algumas universidades, fez provas para outras, mas não sentia que sua vida acadêmica estava ali, no Rio de Janeiro, ou quiçá, no Brasil.
Toni, desde a infância, por pedido de sua mãe, sempre estudou inglês. Jamais praticou além dos muros do curso, e fugia de intercâmbios. Agora, ele conclui que, talvez, o seu curso que faz desde os cinco anos de idade, pode ser a chave para seu futuro. Quem sabe, ele não aproveita e faz provas para universidades internacionais?
Passar por tudo que passou, para ter algo melhor o fez repensar todas as suas decisões, inclusive, pôs na mente que iria fazer algo grandioso. Não tinha ideia do caminho a seguir, mas queria provar para si, para o mundo, que era capaz. Que nenhuma escola racista o seguraria, que nenhum playboy invejoso o seguraria, que nenhuma escola pública esquecida pelo governo o seguraria. Precisava, necessitava voar acima das estrelas.
Entre pensamentos e insatisfações a cerca do mundo ao redor, Toni se viu em meio a uma confusão. As pessoas estavam atônitas. Gritavam, choravam, corriam... Ele se sentia impotente. Não conseguia ajudar. Ao seu lado, viu um buraco explodir e fogo sair. Ao redor, o ar ficava pesado. O ano passou, ele não era mais ele. Se tornou adulto, tinha um cargo importante. As pessoas contavam com ele. Toni estava olhando as estrelas, o sol não estava tão quente, a lua parecia estar sumindo. Veio a ideia. Ele podia construir algo, um transporte que levasse esse povo sofrido para além de tudo que já viram. A solução para a salvação não estava, necessariamente na ciência terrestre. Estava na ciência que tiraria o povo da terra. Agora Toni tinha um jaleco grande, quase um sobretudo como de um médico, mas era cinza. No emblema do ombro, estava a bandeira do seu país. Estava em uma grande sala de estudos científicos. Ele falava com autoridade, todos o ouviam, ele tinha o que precisavam.
O cenário é outro. Toni está conversando com mecânicos, engenheiros, técnicos, todo os tipos de pessoas responsáveis para realizar a sua ousada tentativa de salvar a humanidade. Lá fora, Toni ouviu outra explosão, alguns lhe disseram para se concentrar, que, em breve, ele os tiraria dessa loucura.
O tempo passou. Muitas pessoas estavam tristes, tinham perdido entes queridos, muitos passavam fome. A terra estava colapsando. Muitos se matavam, enlouqueceram, rezavam...
Agora Toni sorria, um sorriso de alívio, uma felicidade contida, um sentimento que não podia ser por inteiro, pois ele, assim como o mundo, perdera alguém. Ele sabia, sentia que não veria mais os cabelos descoloridos e alisados de sua mãe, mas ao longe, ele avistou um idoso, cabelos crespos brancos, olhar cansado, era seu pai, um enfermo vestido de branco sentado em uma cadeira de alumínio, ele pouco conseguia falar. Ele estava sentado em uma cadeira tão velha quanto ele, chorando e dizendo "eu sempre acreditei em você". Ambos choravam, sorriam e tentavam tirar suas dores com a visão que se apresentava em suas frentes: a visão estava turva. A coisa parecia ora um barco, ora um avião, ora um ônibus e ora o seu quarto. Mas em todas as visões, ele conseguia ver milhares de pessoas entrando emocionadas e agradecendo a ele por ter conseguido lhes salvar.
Enfim ele entra na sua criação, põe o pé direito na plataforma de ferro, ou aço ou mesmo o piso familiar de seu quarto.
Todos gritam e ele acorda.
O sol está quente lá fora. Estava tão cansado pelo dia anterior que se esqueceu de fechar a janela.
Toc toc.
Alguém bate na porta do seu quarto, é seu pai. Sempre sorridente, sempre disposto a fazer uma nova piada e animar qualquer clima fúnebre.
— Vamos passear?!
Antônio diz tais coisas que, por uns segundos, Toni esquece que está machucado.
— Sim.
Este não é mais um dia. É o primeiro passo após a saída esperançosa do hospital.

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