PRATO PRINCIPAL

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Após uma grande pausa na história. Gilberto foi quem deu grandes goladas do vinho. Ana Maria respirou, mas não desistiu de contar sua história. Sentia que podia, que este era o momento para detalhar o seu passado e mostrar a visão da sua vida para outra pessoa além de sua psicóloga.
– Na manhã seguinte, arrumando o meu filho para ir a escola, eu refleti. – Foi até engraçado: eu nunca havia refletido tanto sobre a minha vida como naqueles meses imundos! Por uns segundos, com as mãos sobre o uniforme do André, a minha vida veio como um fleche. Fiquei imóvel para o mundo externo. Foi uns minutos que dizem que a alma saí do corpo, entende? Senti que a minha matéria estava ali, mas algo dentro de mim fugira e me olhara como um espectador que visualiza um filme dramático. – Acredita que do quarto, fui parar na cozinha e quase queimei os ovos mexidos que fazia na frigideira? Eu não lembro, juro que não lembro como cheguei até a cozinha. Mas lembro de tudo que pensei neste dia. Eu despertei com um tapa na bunda, dado pelo babaca do meu conjugue. – Graças ao bom pai que não me casei de papel passado com ele!
– Os ovos estão queimando, meu amor. – Ele me disse. – Não quero perder a minha galinha dos ovos de ouro – finalizou sorrindo e pegando os ovos da frigideira que eu, mecanicamente, não consegui me mover para dizer que eram para o André, que ele devia fritar os dele, que eu não era sua galinha... Quando fitei àquele sorriso satisfeito por ter uma boneca para o seu bel prazer... eu tive asco. Antes de sair me deu um selinho. Eu senti ânsia de vômito. Não sei se por ele ou por mim.
– Ana, você não precisa ir fundo em uma história que te trás dor. Quer ir no banheiro lavar o rosto...
– Não. Não me traz dor. Não exatamente dor. Não sei se consigo explicar direito. Saiba que não há mais lágrimas dos homens que me causaram dor. Não mais. Eu sinto uma raiva sim, sinto que eu devia ter me amado mais cedo. Sinto que eu podia ser a melhor versão de mim a muitos anos atrás. Mas... como? Eu não tinha os melhores exemplos. Falo no sentido incentivos em casa, nos programas idiotas que via na televisão. Eu me construí com o tempo, porque tive que me construir como qualquer ser humano. Minha história não é a pior ou melhor que a de ninguém. E por isso não sofro mais por isso. Não vou mentir dizendo que não me traz sentimentos negativos, principalmente falando isso para um homem. Porém, está sendo bom para mim – e nem estou falando de sexo! – Eu nunca havia falado nada dessas coisas para nenhum homem. E estou bem com isso. Acho que é bom você saber/ouvir. É bom que saiba que quem sou e o que me tornei. Há muitas histórias trágicas por aí, de homens e mulheres. Infelizmente nem todas as mulheres conseguem se livrar por bem. Muitas morrem nas mãos machistas de ciumentos possessivos. Eu tive medo, mas... segui minha vida.
Gilberto dá uma golada do vinho, põe sua taça sobre a mesa de centro e pega nas mãos da sua parceira de bebida, olha em seus olhos. Tenta ver o que está ali, mas não consegue identificar. Pensou ser raiva, dor, ou tudo junto e nada disso.
– Pode falar, eu vou ouvir.
Sorrindo, Ana engole um pigarro e recomeça. – Quando ele saiu para trabalhar. Eu olhei para o meu filho. André comia o outro ovo que eu havia feito, ele estava triste. Não chorava, não dizia nada, não... estava ali. André, dos dias de hoje, talvez não saiba, mas ele herdou uma coisa de mim. Ele consegue projetar a sua mente para outro lugar. Um canto onde não há dor, não há tristeza... entretanto, esse lugar também não tem carinho, não tem afeto, não tem amor, não tem nada... É um limbo. E foi esse limbo que me deu forças para me deitar com aquele homem quando ele queria matar seus desejos, quando ele esbravejava, quando ele dizia que eu tinha que lhe ser grato por ele me proporcionar uma vida privilegiada de mulher que não precisa de trabalho para se sustentar. André estava dentro e fora daquela casa obscura. Eu não queria mais que ele fizesse aquilo. Que, como eu, ir-se-ia até outro universo para aturar o seu mundo injusto. Eu voltei a minha cabeça na direção da geladeira, ia pegar algo para comer, eu acho, mas vi o meu reflexo na geladeira de inox. Eu... estava mesmo feia. Relaxada, maltratada... Eu era àquele reflexo distorcido no aço. Tinha braços e pernas para trabalhar, e quando o meu senhor queria também usava o que tenho entre as pernas. Eu não era uma mulher. Era uma coisa.
Neste dia eu não chorei. Não era o momento. Eu juntei as coisas que podia carregar. Disse ao meu filho que ele não iria para a escola, que iríamos ver o vovô e a vovó – criança é uma coisa pura! Ele ficou tão feliz, sorriu e por uns segundos me contagiou e, acredito, que também sorri. Ele ficou estarrecido, me seguiu sem pestanejar, me ajudou a pôr as roupas na sua malinha de herói e saímos com um ar diferente em nossas faces. No caminho, já dentro do ônibus, liguei para o Vagner e disse que estava com medo das consequências. Eu estava tão nervosa, que só na terceira pergunta do meu irmão de "o que está acontecendo?" expliquei o que havia fugido do meu marido.
Ana se levanta, pega sua taça e a garrafa de vinho e indica com a cabeça a cozinha. Gilberto entende e pega sua taça e a segue enquanto ela continua com a conversa.
– Gil. Se tem uns homens que admiro, são meus irmãos! Creio que só não odeio os homens e saio por aí dizendo que homem só serve para sentar, pela forma que eles me tratam. Eles me protegem como a irmã mais preciosa do mundo. E não, apenas, por eu ser mulher, mas sim por saberem os perigos que é ser uma mulher nas ruas designadas e construídas por mãos masculinas. Admiro a forma que eles tentam, nem sempre, em como tratar suas esposas. Não vou dizer para você que nunca erraram, todos erramos, mas diferente de muitos por aí, eles tiveram um bom exemplo de pai e mãe em casa – acho que se eles vacilarem minha mãe é quem mata eles, e não suas esposas. O respeito com as mulheres é uma coisa que minha mãe dizia muito para nós, e quando falo nós, incluo a mim. Não por homossexualidade, mas por entender que a mulher é quem dá a vida a outro ser. Por isso minha mãe ficou muito enfurecida como a minha gravidez aconteceu. Ela achou que, tanto o pai do meu filho, quanto eu, fomos culpados por não nos preservarmos. Quando entendi isso, toda e qualquer raiva que senti dela por querer me pôr para fora de casa se foi.
Na cozinha, Ana pegou a lasanha que prepara da geladeira. Pôs em cima da pia, acendeu o fogão, tirou o papel laminado da lasanha e a pôr dentro do forno. Sobre a quadriculada mesa de um metro, pôs outra garrafa de vinho, incluindo a que já havia levado da sala. Preparou dois pratos, garfos e facas. Para finalizar, pegou mais duas taças pequenas.
– Prefere água com gás ou sem?
– Não estou acostumado com essa pergunta. Só pego água sem gás. Dizem que água com gás tem gosto de joelhos.
– E você já comeu joelho?
– Nunca, mas deve ter gosto de água com gás.

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