FAGULHAS

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Não foi difícil pedir a André que pedisse sua namorada Muara para os levar ou dar-lhes o endereço da Carla. Luna estranhou a intimidade que Wanderson e André conversavam, mas nada disse, apenas se prestou a ficar quieta focando no seu objetivo. Por sorte, ao ligar para Muara, André soube que ela estava a caminho do campo de futebol e que chegaria rapidamente, com pouco mais de quinze minutos. Chegando lá, ficou surpresa com a presença de Luna, mas outra coisa a fez se sentir mais desconfortável. Pela milésima vez ela vira Wanderson na arquibancada. Não entendia o porquê ele ia tanto ao jogo, pois era nítido que ele não sabia nada de futebol e parecia não se interessar.
– Que bom que estava perto – Wanderson exclama com uma felicidade curiosa.
– Novamente aqui, Wanderson?!
– Sim, eu... gosto de pensar que o Cleiton vai aparecer a qualquer momento – mentiu.
– Entendo.
– Olá, você é a Muara, correto?
– Sim. Eu conheci o seu avô. Caramba, você se parece um pouco com ele.
– Que nada. Ele tem uma beleza mais... que engraçado. Parecida com a sua.
– Nem te conto. Até achamos que somos parentes.
Em outro momento, Luna adoraria continuar a conversa; até sorriria da coincidência desta jovem desconhecida se parecer um pouco com o seu avô. Talvez fosse por ele ter antepassados indígenas, ou quem sabe ela não seria mesmo parente dela. No mais, isso não importava agora. Seria só mais uma distração imaginar coisas do tipo. Mas agora, se conteve e forçou um sorriso simpático.
– Luna, ouvi muitas coisas boas sobre você. Seu irmão falava pouco de coisas pessoais, mas quando falava da família ele tinha um carinho bem grande.
– Sério? Eu... Não sabia que ele falava de nós, ou mesmo de mim.
– Sim, falava. Claro que eu soube mais pelo André, do que por ele próprio, mas no último dia que o vi, ele parecia uma pessoa leve... Sabe, uma pessoa livre de certos receios.
– Que bom ouvir isso, obrigada. Mas, me diz. Pode me ajudar?
– Claro que sim. Eu achei estranho quando o André me falou e... – Olha para Wanderson – agora o Wanderson está aqui... Ela não é a minha amiga íntima, mas, você acha que ela sabe alguma coisa do seu irmão?
– Espero que sim. Ela não é sua amiga e jamais seria a minha, mas não falo por isso. Minha mãe nunca simpatizou com ela. Ela nunca fez questão de falar comigo. Resumindo, eu tenho motivos para desconfiar.
– Sim, claro. Então, quando vamos?
– Você também vai? – Luna pergunta com um olhar atento, mas com a cabeça de lado.
– Sim, acho justo. Pelo que estou vendo, o André vai querer ir.
– Mas eu não disse nada.
– Vai?
– Vou.
– Imaginei.
– É muito longe de ônibus até lá? Queria chegar o mais rápido possível.
– O jogador aqui paga, não é?
– Ei, porque está falando nesse tom irônico comigo, desde que chegou?
– Depois nos falamos.
– Olha gente, não quero causar problemas para ninguém. SE quiserem posso ir sozinha. O Wanderson já está aqui, já havíamos decidido que iríamos juntos.
– Não, que isso Luna. O seu irmão não era apenas o melhor jogador daqui. Era também o meu melhor amigo. Para um carro para nos levarmos é o mínimo. Estamos bem – para Muara –, não é?
– Sim – com um sorriso forçado para ele, em seguida vira-se para Luna e sorri com verdade. – Não se preocupe Luna. Vamos com você. É verdade, é o mínimo. Não fizemos nada até agora. Isso é uma forma simples de ajudar.
Com um sorriso triste – obrigada.
No carro, Luna olhava as ruas, os pássaros, tudo que formava um bairro, uma cidade, um local para encharcar de pessoas desconhecidas. Pessoas que ela jamais veria novamente, conheceria ou se quer lembraria. A vastidão do mundo estava engolindo seus sentimentos e os enfiando em um local profundo e negativo. Muara, ao seu lado, sentia que precisava fazer alguma coisa, fazer alguma pergunta, tentar uma aproximação.
– Luna, eu... posso fazer alguma coisa para te ajudar?
A pergunta, mesmo saída de uma pessoa ao seu lado, não alcançou seus ouvidos. Sua mente estava longe. Longe do carro, do mundo. Muara cutucou Luna com delicadeza e insistiu.
– Não precisa ficar sozinha.
Luna a olhou, queria sorrir, mas não conseguiu encontrar a simpatia que desejava. Começou a falar em um tom audível, mas não parecia que queria respostas, ou que desejava falar com as pessoas de dentro do automóvel.
– O laço entre irmãos é uma coisa tão estranha. Quanto mais eu penso sobre isso, mais eu tenho a sensação de estar distante das respostas que unem uma família. Eu, em momentos bobos de raiva, essa coisa fútil que conviver com outra pessoa acabamos fazendo – pausa. – Eu quis que ele sumisse – olha para fora, vê as pessoas se movimentando, parecem que vão ser fagulhas no tempo, uma coisa vaga, dúbia que está ali somente para preencher um espaço no mundo –, que desaparecesse, desejei ser a filha única, cheia de mimos, presentes... – suspira e sorri com um desespero contido – Como fui egoísta. Eu tinha essa ideia de fazer um desejo e, simplesmente ele deixaria de existir. – Luna tenta pegar as pessoas que estão na rua através do vidro do carro, olha, faz uma pausa e continua falando sem visualizar Muara ao seu lado com André, o motorista a sua frente, Wanderson ao lado dele – Eu... desejei isso. Mas no fundo, eu sabia que no dia seguinte essa coisa chata estaria no mesmo lugar para me encher o saco, mas... – fecha os olhos, se lembra do sorriso tolo do Cleiton enquanto fazia uma brincadeira idiota – ele era o meu irmão, ele estaria ali quando eu precisasse. Como foi no meu aniversário de quinze anos que, graças a ele, meus pais souberam para onde eu queria ir, viajar. Eu sabia disso. Sabia que por mais que eu tivesse raiva, brigasse comigo, ele estaria ali...
– Não vamos desistir – André tenta um consolo, mas Luna não houve. – Vamos encontrar ele.
– Eu tenho quinze anos, apenas quinze anos.
As lágrimas querem fugir, o coração, palpitante, quer desafogar a inundação que mantém o cérebro de Luna na busca de uma fria razão. Luna não vai chorar, não vai permitir que seu mundo desabe mais que já está. Ela precisa ser forte. Por ela, por sua mãe, por seu pai, por todos que não tiveram a coragem de fazer alguma coisa a respeito deste desaparecimento.
– Eu nunca fui militante, nem sei se tenho vocação para isso. Mas ver o descaso da policia, as palavras que eles usaram para fazerem perguntas pecaminosas... Me fizeram entender o meu lugar. – Olhando para suas mãos – A minha pele é mais clara. E ele, como disse o policial, tinha cara de bandido.
Todos se olham. O motorista, negro, quer dizer alguma coisa. Sua profissão é motorista de aplicativo, mas o seu sonho era ser apresentador de programas da tarde, uns que ele vinha com seus pais quando era crianças. Mas não tinha a beleza clara de todos os apresentadores que via. A menina sentada atrás do seu banco dizia verdades que lhe doíam, mas nada doía mais do que se sentir incapaz de fazer alguma coisa sobre a sua vida e abandono de sonhos. Todos se calaram, não sabiam o que falar. Muara pegou a mão de Luna, estava fria e suada.
Luna olha para ela, suspira – Ninguém vai procurar o meu irmão.
– Nós vamos.

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