BATENDO UM BOLÃO

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Um atencioso vislumbre ao horizonte pode lhe mostrar bem mais que uma separação da natureza. Apreciar a magia que nos presenteia sem seus benefícios literais para com a nossa saúde vital. Talvez não compreendamos no instante que nos dispusemos, quem sabe se o determinado momento está ali só para que, mais tarde, entendamos o valor de um caminho vitorioso.
Como é estar em um local que não seja o nosso habitat? Estar onde diríamos com precisão que jamais passaríamos é um desconforto para qualquer pessoa. Podendo nos deixar estressados, chateados e até enraivecidos, caso estejamos obrigados a comparecer. Mas assim como a magia do horizonte marítimo, pode haver mudança climática que nos permite tocar na esperança de terra firme. Todos aceitamos a positividade. É sempre gostoso, revigorante ter uma inesperada felicidade.
Sentir-se diferente, deslocado, sozinho... São sentimentos que todo adolescente passa em sua transição para o entendimento do seu "eu" adulto. É comum e normal ter um pingo de depressão por não se encaixar em algum padrão ou classificação que insistem que temos que optar no período escolar. Isso, certamente, pode deixar marcas, implantar duvidas na cabeça de um ser que está em mutação. Não é possível evitar esse caminho, assim como não é possível que seja um eterno sofrimento. Claro, pode haver sequelas de acordo em como cada pessoa lidou com esse estágio. Alguns sofrem bullying, racismo, homofobia... entre outras coisas repugnantes da mente má humana. Mas há também pessoas que não conseguem enxergar nada disso, e só mais tarde entendem os vidros quebrados que pisou e não viu os pequenos furos na criação do seu ser jovem para adulto. E Wanderson se encaixa nessa pessoa.
Ser o caçula, algumas vezes, não é uma tarefa fácil, e ser o mais novo dentre cinco irmãos pode ser problematicamente pitoresco.
Os primeiros da família Mamede eram muito pobres, sobrenome por parte de mãe. Moravam em comunidades pobre e algumas deveras violentas. Muitos foram vencidos pelo crescente tráfico dos anos 90, outros nem chegaram a isso. Toda a sua geração foi de vendedores ambulantes, ou qualquer tipo de trabalho braçal como pedreiros, mecânicos e outras profissões que não precisavam de diplomas para aprender o ofício. Eram pessoas maravilhosas e educadas, mas acreditavam que suas vidas não iam passar disso, então, porque tentar mudar?
O quadro familiar da família de sua mãe, a família Zeferino era diferente. Não eram ricos, ou burgueses, mas não se conformavam em viver com apenas o necessário. Estudar era o foco dos Zeferinos. Alguns até se complicavam com dividas para pagar os estudos de seus filhos, mas valia o sacrifício. Com o tempo foram se transformando em pequenos empresários, médicos, donos de comércio... e foi aí que a mudança veio para os Mamedes – sim, para os Mamedes.
Wanderson faz parte da geração atual, a geração que nunca passou necessidades financeiras como o seu irmão mais velho que passou fome com os pais desempregados. Ele não teve que trabalhar com dezesseis anos, como a sua irmã do meio que ficou grávida com quinze anos e foi trabalhar para ter uma vida melhor com seu esposo — hoje separados —. Nunca comeu frutas e legumes da xepa da feira como os outros cinco irmãos. Sua vida foi completamente diferente desde o berço.
Wanderson nasceu prematuro. Seus pais já tinham mais de cinquenta anos quando veio ao mundo. Planejavam sim ter outro filho, pois tiveram quatro em tempos difíceis, dentre eles três não planejados, então decidiram que agora queriam mais um em condições mais dignas; mas por conta da idade, dona Marta teve complicações na gravidez e quase veio a falecer no parto. Mas enfim o filho mais esperado conseguiu ter forças para desabrochar.
Seu pai nunca teve orgulho em ter e fazer vários filhos. Era um acontecimento e ele tinha que arcar com suas responsabilidades. Quando jovem, pensou em ter o máximo de filhos, mas como realizar isso sendo pobre e mau tinha o que comer? No entanto, agora, veio o filho mais esperado: aquele que era a prova viva da mudança de status. Então pôs o seu nome na criança. O comum é que "Junior" seja o primeiro filho, e para ele era como o primeiro.
A união dos Zeferinos deu o arranque para a transcendência das famílias. Dona Marta, nos primeiros dias não pôde ajudar a família como queria e teve problemas financeiros, mas com os seus filhos crescendo e ela pondo em suas mentes a determinação de sua família, todos foram chegando a adolescência com pensamentos de crescimento profissional. Foi se tornando uma regra chegar aos vinte anos com um emprego fixo, o que gerou as primeiras rendas concretas para a família. Quando o emprego fixo chegava, faziam cursos técnicos de informática, engenharia, entre outros. Principalmente cursos que não demandavam muitos anos. Quando Wanderson nasceu, todos já estavam empregados, eram casados e tinham suas vidas longe dos pais. Mas o nascimento do jovem uniu todos em prol de um objetivo em comum: esta criança não passaria por nada do que eles passaram. E assim foi. Wanderson foi o primeiro dos Mamedes a estudar em um colégio privado. Fez e faz todo tipo de curso que sua família acha interessante para sua vida. Faz curso de inglês desde criança, sendo o segundo a família fluente em inglês. O primeiro é o seu irmão mais velho, que tem uma pequena rede de supermercados e por abrir uma franquia na Zona Sul do Rio de Janeiro, achou conveniente cursar esta língua; visto que na área onde abriu seu comércio, tem uma grande visitação de pessoas de outros países.
Dizem que há beleza gloriosa em sonhos sonhados em conjunto, no entanto, e se o seu sonho que está transmitindo para outra pessoa não é o que ela quer, e sim o que ela está aceitando para não te magoar? Este é o impasse na vida de Wanderson. Seus pais e irmãos o mimam desde que se entende por gente. Nunca tomou uma decisão importante sozinho, ou até decisões bobas como ir a esquina comprar doces. Sua personalidade, seus desejos, suas vontades acabaram sendo ofuscadas pelo maior sonho da família em criar uma geração rica. Entendendo que o que lhe fazem é para o seu bem, Wanderson jamais questionou sua posição em casa. Um curso para fazer? Sim, farei. Quer viajar de avião para São Paulo, para conhecer a cidade e perder o medo? Sim, irei – isso sem ele jamais dizer que tem tal medo.
Com o tempo, Wanderson foi ficando cada vez mais robótico nas decisões de sua família. Procurava ser o melhor em tudo que fazia, mesmo esse tudo não sendo o que queria. O pior é que ele jamais se questionou o que queria fazer com sua vida. Não sabia quem era, não sabia o que queria, não sabia do que gostava. E isso reverberou em literalmente tudo em sua vida. Wanderson se dedicou ao extremo aos estudos, viva como rei, porém, um rei preso em um castelo militarizado por um sentimento que não lhe pertencia. Com o passar dos anos, a idade avançando, seus amigos namorando, Wanderson foi ficando para trás nos assuntos adolescentes. Quando lhe perguntavam se ele gostava de meninas, não sabia responder. Quando lhe perguntavam se gostava de meninos, não sabia responder. Sua vida era estudar, fazer as vontades dos seus pais e irmãos. Namorar, ter alguém, lhe parecia perda de tempo.
Por mais estranho que possa parecer, Wanderson não se questionava com relação a sua sexualidade. Pensava que se um dia fosse ter alguém, homem ou mulher, saberia, enfim, o que iria querer para assuntos matrimoniais. E foi assim que aconteceu. Sua primeira atração foi um jovem, filho de um dono de sacolão. Wanderson, até então, não tinha conhecimentos do que sentia. Mas ao ser questionado por seu amigo Cleiton, acabou se confundindo e assumindo que achara o rapaz bonito. E claro, seu olhar vibrante no jovem o denunciou ainda mais. Este foi o primeiro encontro de Wanderson com seus desejos, mas tudo parou por aí. Entendeu que era apenas uma atração infantil e, mais tarde, voltando a focar nos estudos, a ideia de sentimento ficou abafada.
O segundo momento que Wanderson entendeu quem ele realmente era foi no dia em que o seu pai insistiu que fosse em um jogo de futebol ver o seu amigo e vizinho Cleiton. Diferente da atração infantil de outrora, Wanderson sentiu muito mais admiração por beleza física. Tanto que não conseguiu esconder sua empolgação e passou a querer frequentar regularmente o estádio de futebol apenas para saudar o jovem que lhe fizera olhara para dentro de si.
Já amigos, Wanderson passou a ser convidado para ir a alguns lugares como lanchonete, bares e, um local não menos importante: o vestiário masculino do time de futebol. Por não ter nenhum trejeito ou parecer ser homossexual, Wanderson começou a ter amizades com o time de futebol e eles não se importavam com a sua presença no vestiário, pois como todos eram do mesmo sexo, era comum estarem nus no mesmo ambiente.
Após uma derrota para um time adversário, o time de futebol demorou horas no vestiário. Decepcionados com a decisão, todos gastaram muito tempo no banho esfriando suas cabeças e pensando no campeonato que estavam prestes a perder. Wanderson, com receio do que poderia ouvir, preferiu não ir ao vestiário, mas seu amigo o chamou. Wanderson, não querendo causar transtornos, preferiu ao menos o esvaziar do local. Então, com a maioria indo para casa, ele adentrou o vestiário. André, seu amigo, estava decepcionado e triste com sua vida. A poucos dias atrás o seu melhor amigo e atacante havia sumido, isso causou um efeito negativo no time que estava contando com ele para jogar mais algumas vezes antes de sua viagem. No desabafar, André se permitiu abraçar e chorar no ombro de Wanderson.
– Sabe, é provável que hoje a Muara venha aqui. Mas ela não me entende. Eu quero tudo de bom pra ela, mas... às vezes acho... ou melhor a psicóloga acha que eu me esforço demais, para tudo, e principalmente para essa relação. Acabou me pondo de lado para a felicidade dela. E eu? Bom, não sei conversar com ela.
– Mas... você tenta conversar com ela?
– É ai que está o problema: eu não consigo nem tentar. É estranho. Mas... com você é diferente. Eu sinto que posso ser eu mesmo, sem peso, entende? Eu... – André o olha nos olhos – sinto que você vai me ouvir de verdade, não vai me julgar, não vai me chamar de louco, não vai dizer que me esforço em vão.
– Eu... sou o seu amigo.
– Sim, meu amigo.
As mãos dos jovens se tocam. Os olhares estão tão unidos e penetram além de suas írises. Seus acordes querem tocar um dueto que ambos desconhecem. A decisão está ali, perante seus olhos, mas quem tomaria a decisão que a lógica de suas vidas cotidianas insiste em negar?
– Sua mão, não está no banco.
– Não André, não está.
– Você... – tira a mão do amigo de cima da sua – gosta de...
– Eu acho que sim. – Tenta uma nova aproximação. – Você quer?
– Se quero, o quê? – Se afasta levantando-se. – Do que está falando, não... eu... isso não é certo.
– E o que seria certo? Um relacionamento que tanto se sente sozinho? Com uma pessoa que não te entende? André, eu te entendo. Eu sou a pessoa que sempre te ouve, que só deseja o seu bem e que... Está sentindo o mesmo batimento que você agora.
– Não. Não estou sentindo nada... Do que está falando.
– Se não está sentindo nada, olhe nos meus olhos.
André, com dificuldades, olha na direção do amigo ainda sentado no banco. Wanderson se levanta e fica de frente, mas não tão próximo.
– Isso também é novo pra mim. Mas ficarei feliz em compartilhar com você esse sentimento.
– Você me parece tão seguro.
– Mas não estou. Só não quero que isso seja um problema. – Chega mais perto – Quero que seja tão natural quanto a amizade que criamos.
– Ela é a minha namorada a tanto tempo...
– E não enxerga o real problema?
– Como assim?
– Você não sabe se ama ela ou se está acomodado.
– Eu gosto dela.
– Não seria correto dizer que ama?
– Eu... nunca... Não sei o que dizer... Você planejou isso?
– Planejei que perdessem o jogo? Que você me chamasse aqui quando todos estivessem em suas casas? Planejei me apaixonar por você? Está se escutando?
– Eu...
– Não faça isso, não torne mais um problema na sua vida. Tudo bem se não quiser, mas não diga não agora. Só estamos eu e você.
– Nunca pensei nessa possibilidade.
– E continue não pensando. – Seus rostos estão próximos ao ponto de sentirem suas respirações - Você não quer?
– Não disse isso.
– Então feche os olhos.

O QUE NOS FALTA ...🔞Where stories live. Discover now