O QUE PEDIR PARA QUEM TEM TUDO

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É possível medir a quantidade de prazer por ter a felicidade necessária para uma vida satisfatória? Se a ciência fosse se dedicar a esse estudo, com toda certeza começaria no réveillon de dois mil e vinte e dois, para vinte três, na casa da família Santos. A energia emanada por cada um era quase palpável neste final de tarde.
Não foi uma tarefa tão fácil iniciar os preparativos para a ceia de ano novo a partir das dezoito horas, horário este que seu Euzébio e companhia chegou do hospital. Todos ajudaram, mesmo seu Euzébio que deveria ficar sentado quieto vendo televisão, hora insistia em levar uma travessa de manjar para a sala, a vasilha com pasteis e alguns refrigerantes. A cada "não" que recebia, uma nova manhã de ir pegar na inchada para capinara aparecia. Apesar disto, a tarde foi felicitada com sorrisos, brincadeiras e muita cumplicidade.
- Se eu não me deixarem pegar esse pudim, eu vou para o quintal, hein! - Dizia já com o tabuleiro de Pudim nas mãos e saindo vagarosamente de encontro a mesa da sala.
- Ai, esse velho não tem jeito mesmo, hein! - Maria brincava de dar broncas olhando o Peru no fogão. - A senhora é muito paciente de ficar tantos anos com esse turrão.
- Nem me fale minha filha, nem esquento mais a minha cabeça. Mas às vezes - pensa na manhã e para de cortar os legumes para a salada de maionese -, temos que dar um bom puxão de orelhas. Sou muito nova para ficar sozinha naquela casa. - Sorri de nervoso, mas logo se torna um sorriso gostoso com as brincadeiras das demais.
- E você acha que o Nero fica para trás? - Dona Odete fala gratinando o frango em cima da pia, ao lado de Dona Solange. - Ele também pensa que é novinho. Vive dizendo que vai vender o carro e comprar uma moto. Agora veja só, um velho desses de motoca passeando por aí.
- Meninas, meninas... Parem de difamar os homens dessa família. Vivemos menos, mas felizes. - Gilberto diz fritando as rabanadas com a ajuda da Luna que passa o açúcar com canela, após sair da frigideira.
Luna cochicha para ele - Pai, cuidado hein, é melhor não falar nada, vai sobrar para... - Antes de Luna terminar a frase, Maria vira-se para Gilberto.
- Ahhh... E o senhor não venha falar nada. Fica aí com esse trabalho pesado, e ainda que mais. Bom não ficar doente ou com dores não hein. Seus filhos ainda são muito novos.
- Eu tentei avisa. - Finaliza sorrindo de esguelha.
Gilberto não retrucou, apenas sorriu, olhou para a filha fazendo uma careta e as mulheres continuaram os afazeres reclamando dos seus esposos.
Seu Venerando e Cleiton foram no mínimo umas três vezes na rua, de carro, comprar algo que esqueciam. Fosse pão de rabanada, que quase não conseguiram, pois chegaram no átimo em que o supermercado ia fechar. Também foram no sacolão do Manelão, um sacolão de esquina com a estrada principal do bairro, muito conhecido por todos; é um humilde sacolão ministrado pela família do criador e primeiro dono, Seu Manoel, ou como todos o chamavam, Seu Maneu. Manoel era um homem humilde que vivia ajudando as pessoas que encontrava pela rua. O seu sacolão começou com uma vaquinha solidária que fez no bairro. Algumas pessoas tinham tão pouco que apenas centavos puderam oferecer, mas Seu Maneu aceitava sorrindo e de muito bom grado. Quando enfim conseguiu fazer o seu sacolão, fez questão de dizer a todos que vendia fiado para os que ajudaram e também venderia para quem precisasse, no entanto, poucas pessoas aceitaram a oferta e compravam à vista ou catões. O sacolão do Seu Maneu, hoje ministrado por sua família, é o mais popular e o menor do bairro. Mas é conhecido por sua hospitalidade e qualidade nos produtos.
Na parede dos fundos do sacolão há uma foto emoldurada de Seu Manoel. Muitos que o conheceram, ao passarem por seu retrato, dá um sorriso por lembrar do seu carisma e bondade que espalhou através dos anos pelo bairro. Se não fosse a sua morte natural com noventa e cinco anos, em dois mil e vinte dois ele completaria cento e cinco anos. Uma idade difícil de chegar, mas era inevitável não pensar que um homem como aquele não pudesse ser eterno e continuar a distribuir a sua generosidade para o mundo. Foi olhando para essa foto ao pegar uma penca de bananas para enfeitar a mesa da ceia, que Cleiton lembrou de seus avós e, claro, o acidente pela manhã com seu Euzébio.
- Que todos que amo vivam o suficiente e com honra, assim como o senhor Seu Maneu. - Pensou alto, mas o sorriso com a boca contraída e os olhos marejados foram mais altos e sinceros. - Que do alto o senhor reze por mim na Europa, farei muitos gols e dedicarei o primeiro ao senhor.
Noutra ponta, pegando algumas mangas, Seu Venerando observava o neto com orgulho. Não podia ouvir o que ele cochichava olhando aquela foto de uma celebridade local, mas tinha certeza que o sentimento que ele exprimia era de bondade.
Quando deu dez vinte e três horas da noite, com tudo pronto, todos estavam morrendo de cansaço. Não era por menos, construíram uma ceia de ano novo, cheia de guloseimas e um pouco mais em poucas horas. O que levaria o dia inteiro, levou apenas cinco horas. Havia cansaço, mas a felicidade era maior. Sentados na sala assistindo uma programação de final de ano, todos conversavam, bicavam uma sobremesa e outra e curtiam o chegar do próximo ano. Nesta casa, não houve o contar da chegada do Réveillon, pois estavam distraídos demais com sorrisos carinhosos. Porém, quando os fogos começaram, foram ao quintal olhar o céu, os vizinhos festejando, os cachorros, latindo, os gatos miando... Nesta magia luminosa, se abraçaram, deram-se felicitações e, por uns segundos, mesmo com poucos fogos no céu, ficaram olhando para cima esperando alguma coisa acontecer. Não tinham pedidos a fazer ou esperavam algum milagre, mas todos esperavam uma brisa tapear suas faces. E quando ela chegou, suspiraram baixo, fecharam os olhos, soltaram o ar e sorriram sutilmente.
Costumamos pedir muitas coisas ao novo ano que nos presenteia, mas para esta família, um pedido óbvio era feito em conjunto: Que todos se mantivessem unidos com essa energia em todos os dias do ano. Talvez fosse um pedido impossível, afinal, a felicidade eterna, soberana e constante é um sonho pueril de mentes solitárias, mas isso não importava; só queriam poder sentir essa sensação o máximo de tempo possível.
Após mais alguns minutos conversando no quintal, outros no sofá, o cansaço começou a bater mais forte. A gostosa sensação de pertencimento não lhes permitiu catalogar os primeiros a ir dormir, apenas foi um, depois dois, mais dois... E quando a noite estava no ápice, todos já estavam dormindo e sonhando com um dia seguinte tão bom quanto a virada de réveillon que amanheceu mal, deu esperanças a tarde e anoiteceu com cumplicidade e amor familiar.

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