UMA NOVA ESPERANÇA

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A notícia que o bairro de Irajá esperava, chegara para acalmar os corações preocupados. A suposta hérnia de disco que assombrara Sr Euzébio por anos foi desmascarada no hospital. Graças a um plano de saúde que pagava com sua aposentadoria, pôde ir em uma boa clínica e fazer uma ressonância magnética, raio-x... tudo que devia fazer para não haver suposições equivocadas. Havia gravidade na saúde do Sr de mais de setenta anos, mas com o devido cuidado, medição e fisioterapia, ele poderia ficar bem e voltar as suas atividades normais. Já na cama de um quarto medicado e dopado, ao lado de sua esposa e filha, Seu Euzébio já se sentia melhor e estava impaciente, louco para ir-se-embora. Entra uma enfermeira simpática, sorridente, mas já lhe dá uma bronca com o olhar e meneia a cabeça, porém, em seguida, muda a expressão.
- O Sr deu um susto em todos, não foi? Mas que bom que já os destravamos, já acabou a dureza - sorri. - O que temos não é tão simples, porém, é curável. A sua coluna tem uma curva, como a letra S. Os anos de trabalho...
- Trabalho na roça - explicou Dona Solange. - Esta acostumado a coisas pesadas.
- Sim, noto que ele é bem forte.
- Mas também é muito teimoso - completou Maria.
- Mas tenho uma boa e uma má notícia com relação a isso, que são associadas: ele tem a musculatura jovem e firme, e graças a isso ainda consegue executar trabalhos pesados. Todavia, o excesso de trabalho e sua coluna torta, causaram uma atrofiação muscular. Que, logo, fez com que sua coluna travasse e não respondesse os seus sinais. A sua coluna está em um estado bem ruim, vai precisar de bastante fisioterapia e também musculação específica, na área deste pequenino problema. Hoje, por favor, o Sr precisa de repouso, pois está bem por conta dos antibióticos, mas, mais tarde, deve sentir dores. Então, Sr Euzébio, nada de exageros.
Antes da alta médica, faltava algumas questões burocráticas do plano de saúde; também receitas médicas, medidas escritas... tudo que as Marias, mãe e filha resolveram enquanto o acamado resmungão repousava vendo um filme natalino.
La fora, na recepção, Seu Venerando esperava ao lado de um jovem muito bonita, com um olhar curioso, mas que não puxava assunto, parecia estar envergonhada. Então, Venerando quebrou o gelo:
- Hospital é sempre chato, não é? - A menina balançou a cabeça positiva. - Tenho um amigo aqui hoje, sogro do meu filho. Já recebi a notícia que ele está bem. Espero que também esteja bem com quem veio com você.
Ainda tímida, a menina respondeu. - Não estou com ninguém hospitalizado.
- Que bom, que bom! Não precisa fazer esse olhar, parece que ficou triste ao dizer isso.
- Não é isso. É que... estou sentada aqui a um tempo, vendo pessoas entrarem e saírem. Muitos doentes, alguns machucados. Por ser um hospital pago, eles tomam cuidado para não expor alguma coisa pesada, como alguém sem braço... - dá uma pausa, se lembra de homem de aproximadamente quarenta anos que passou; ele gemia de dor e reclamava do braço. Mesmo em baixo dos panos, era possível imaginar e sentir o que ele sentia. - Eu me sinto... Não sei explicar. Sinto como se estivesse privilegiada e engando as pessoas por estar aqui. É como se... eles estivessem agonizando e eu, bem de saúde, sorrisse ao vê-los nessa situação.
- E você sorri?
- Não, pelos deuses! Eu sinto um nó na garganta. Eu queria ajudar de alguma forma, mas... só posso olhar, ou pior, virar o rosto e fingir não ver tanto sofrimento.
- Menina. Isso se chama compaixão, empatia, amor ao próximo... se chama muitas coisas positivas para com o outro. Mas nunca, dor. Você não deve ficar mal por se sentir assim. Esses são os fardos que eles estão carregando: dor física. E você, em sua compaixão, está carregando uma dor no coração. E te digo, sem comparações é claro, a sua dor é para poucos e, infelizmente, muito pesada para carregar.
- Isso... acaba? Isso pode parar um dia?
- Não desejo seu sofrimento, mas desejo que não acabe. - A jovem franziu o cenho. - O que sente pode ajudar muitas pessoas no futuro. Talvez você tenha que, hoje, ver isso. Para amanhã, quando poder e ter as ferramentas, ajudar quem necessita.
A jovem tentou um sorriso ao ouvir as palavras confortantes, mas ainda estava com uma sensação estranha no coração.
- Sei que já falei demais, porém, o que te traz a um lugar desses?
- Não falou demais. Obrigado, acho que devo agradecer. Eu não costumo vir aqui, é a primavera, para falar a verdade. Mas minha mãe me pediu para fazer uma entrega e talvez seja a última que farei, pois o negócio dela parece que irá melhorar e não precisará mais de mim. Eu gosto de ajudar em casa, como sempre fiz, mas com entregadores, eu posso me concentrar mais nos estudos...
- Isso, isso... isso é bom!
Antes que continuasse sua história, a enfermeira que estava no quarto do Seu Euzébio apareceu.
- Olha, isso é muito bom de se ver. - Seu Venerando e a menina fitaram-na. - As duas pessoas que eu mais queria encontrar, cá estão: juntas e batendo um papo. Espero que tenha sido um bom papo. Seu Venerando, a sua família está de saída. Me pediram para lhe chamar e auxiliar o Seu Euzébio. Ele não quer sua ajuda, mas além de elas terem insistido, eu digo que é melhor ter alguém ao lado dele para puxar o seu braço, caso venha a passar o efeito dos antibióticos.
Seu Venerando já ia dar um adeus para a menina e ir-se para o quarto, mas a enfermeira pediu para esperar um minuto, que era no segundo andar, ela o guiaria pelo local. - Ah, e obrigado por vir aqui trazer o meu vestido Muara, eu sinto muito se fiz você esperar. Mas esse caso foi um pouco grave.
- Tudo bem. Eu adorei estar aqui com o, qual é mesmo...
- Venerando. E apesar de eu não ser tão parecido com você. Também tenho parentes índios. Meu avô, na verdade.
Muara abriu a boca para falar algo, mas a enfermeira continuou.
- Diga a sua mãe que serei eternamente grata por me atender de última hora. Olha, aqui está - tira um envelope da prancheta -, está o valor do vestido, o frete - Muara já ia falar que não precisava pagar frete, mas notando, a enfermeira a consolou - ... claro que precisa e faço questão. Não quero saber se já foi incluso ou não no valor do vestido.
Pouco tempo depois de Muara sair, a enfermeira mandou uma mensagem:
"Obrigada novamente por ter vindo às vésperas de réveillon. Eu não falei nada antes, porque sabia que recusaria o presente. Eu ia te dar algum presente de final de ano, mas essa é apenas a terceira vez que nos vemos e não tenho intimidades. No envelope há também um valor para você comprar um agrado. Não é caridade, não se ofenda, é por ter sido generosa e ter trabalhado nesse final de ano. - Ah, e porque também te acho uma fofa.
Ps. Adorei quando fui na sua casa ficamos conversando sobre àquelas coisas."
Muara, emocionada, só foi responder e agradecer a mensagem quando chegou em casa e contou a sua mãe tudo que aconteceu neste dia completamente atípico.
Pouco antes de sair, Muara ainda teceu umas palavras com Venerando.
- Obrigada novamente. - Já próximo a porta de saída - Quem sabe não sejamos parentes. O meu vive dizendo que há outros de nossa tribo no Rio.
- Que sejamos parentes. Até mais.
Após os "até mais, até logo, tchau...", a enfermeira auxiliou-o até o quarto.
Mesmo não havendo necessidade, a enfermeira auxiliou a família até a porta.
- Muito abrigado, jovenzinha. - A enfermeira sorriu - Você é muito atenciosa. Eu tinha medo de estagiários, porque um havia dito que eu tinha uma hérnia de disco. E não me prescreveu nada além de remédios.
- Te entendo Seu Euzébio. Alguns profissionais são preguiçosos. Mas na verdade não sou estagiária, respeito quem é, pois é o processo que todos nós formandos temos que passar. Mas eu já sou doutora. Hoje, apesar de não parecer é o meu primeiro dia e o senhor é o meu primeiro paciente.
- Me desculpe, me desculpe.
- Por isso é tão boa - elogiou Solange.
- Concordo mãe - Maria completou com um sorriso.
- Mas o seu jaleco não nos deu pista.
- Ah, sim. A falta deles, quer dizer. Eu não ia vir hoje, ia começar em janeiro. Mas o meu namorado está trabalhando mesmo hoje, então não achei justo ficar em casa. E graças a isso, conheci essa família linda e unida.
- Espere até conhecer a outra parte dela, meus netos são lindos.
- Sim, são meu velho. Mas temos que ir. Obrigada enferm... perdão, doutora.
- Espere, espere...
- Ai, pai. Não gosta de hospitais, agora não quer ir embora.
- É que não perguntei o seu nome. Quero guardar este dia e essa pessoa tão dedicada.
- Sua esposa vai ficar com ciúmes.
- Ih, minha filha. Se quiser levar esse velho teimoso com você... meus pêsames.
Todos sorriram, e quando pararam a doutora respondeu ao Seu Euzébio.
- Me chamo Rosa Gomes.
- Que nome lindo - levanta o braço direito e faz um gesto desenhando no ar, tirando-o da proteção do Sr Venerando. - Doutora Rosa Gomes. É um lindo som.
Aos sorrisos e olhos marejados, a família se vai, a doutora Rosa Gomes volta ao seu posto, mas agora, com uma feliz gratificação.

O QUE NOS FALTA ...🔞Where stories live. Discover now