PRESENTE DA DEUSA DA NOITE

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A passos lentos, Luna caminha pela rua. O clima noturno do bairro boêmio tinha lá o seu encanto. Ao passar em frente ao pequeno bar do Zinho, viu alguns homens sentados bebendo cerveja, sorrindo; outros jogando baralho, muitos sorrindo. Zinho, sua esposa Claudia e seu filho mais velho Abel, ou Abelardo, como odeia ser chamado, sorriam servindo os já conhecidos clientes. O bar do Zinho era o mais antigo do bairro. Apesar de todos chamarem o novo dono de Zinho, na verdade, Zinho era o seu pai que, outro fato, se chamava José, mas em sua época havia três José no bairro. O José dono do mercadinho da esquina, que ficava na saída para a rua principal, é o José da padaria, mas este era uma criança que trabalhava com os pais, hoje dono da padaria. E ele, o José. Com o tempo, cada um desses Josés foram tomando outros apelidos: O José do mercadinho foi o único que continuou a ser o José do mercadinho. Mas o José criança, se tornou o Zezinho, ou, graças a um filme brasileiro que tinha um malfeitor com esse nome, virou o Zé Pequeno. E o José que, futuramente abriria um bar, se tornou Zinho, já que não poderia ser Zézinho, para não confundir com o Zé Pequeno. Zinho abriu o bar com esse nome: Zinho's Bar. O atual Zinho se chama Clodoaldo, mas por ser um nome difícil todos preferiram chama-lo de Zinho, incluindo sua família.
Mais a frente, noutra calçada, Luna avistou a pracinha cheia de crianças, mães conversando, ora davam broncas em seus filhos por correrem, caírem, mas sempre felizes por estarem ali, brincando por serem crianças. Outras crianças brincavam no velho balanço que vez ou outra está quebrado, mas sempre o concertam. Ele já teve cordas de sisal, correntes de ferro, cabos de aço e até fios que a companhia de luz jogou fora. Mas o boêmio bairro jamais ficou sem a diversão da criançada que também alternava com a gangorra. Nas mesas de concreto, com desenhos quadriculados formando um tabuleiro de xadrez. Idosos jogavam Damas com tampinhas de metal. Eles se divertiam com uma coisa que seria lixo para outros. A felicidade pode vir de uma coisa tão pequena.
Pela rua, Luna encontrou seu João que a cumprimentou, como sempre, com um sorriso. Este era o horário que ele retornava de seu trabalho. Luna não se recorda de algum dia tê-lo visto triste, ou que não estivesse com a sua famosa simpatia. Cristina e sua filha estavam no portão conversando com Dona Marta, do alto de sua janela Sonia tinha uma expressão amena. Não dizia nada, falava com quem a cumprimentava, mas esta noite, mesmo ela, tão fechada em suas orações, parecia querer saudar o negrume que vinha dos céus, olhar a imensidão que, agora, estava estrelada, sentir a brisa gélida e apreciar a lua que conseguiu sair apesar de algumas nuvens tentar esconder sua beleza. O bairro de Irajá não mudara. Tudo estava como sempre esteve. Se Cleiton estivesse ali, naquele horário, estaria retornando do seu clube de futebol, chegaria em casa desafiando a sua paciência, disputando o controle remoto da tevê da sala e, ou, indo passear com os seus amigos. Cleiton tinha muitos amigos, pensava vendo os adolescentes do bairro conversarem nas calçadas, nos bancos da praça, nas barraquinhas residenciais, por todo o lugar. Adolescência. Luna ainda teria a chance de retornar ao seu estado de adolescente?
Havia mensagens, recados nas entrelinhas das pessoas que a rodeavam. E qual seria a mensagem? Ou teria várias mensagens? Felicidade de estar com quem se ama? Valorizar quem está do nosso lado? Se divertir com pouco? Apreciar o que a vida tem de melhor? Isso realmente importa? Não era o momento de reflexão. Queria apreciar tudo que vira, mas na mesma proporção que preferia estar com o seu irmão.
Já na calçada de sua residência, Luna deu uma última olhada para seu bairro, estava aconchegante. Cada vida, cada pessoa fazia parte do símbolo que era a boemia carioca. Na sua lojinha de conveniências, ou mercadinho, ou barraquinha... ou qualquer coisa que queiram chamar; dona Estela olhava para Luna. Luna sorriu para ela, ela retribui, deu um tchau e adentrou.
Em casa, encontra sua mãe dormindo no sofá. Maria Maria, outra parte da veia que bombeia vida para Irajá. Com um sorriso terno, mãos de veludo, Luna desperta Maria que, preocupada, pergunta quanto tempo ficou adormecida. Luna diz que possivelmente uma hora e meia a duas horas. Descoordenada, Maria pergunta a filha se ela quer comer alguma coisa, se já jantou, se tomou banho... todas as perguntas possíveis em menos de trinta segundos.
– Eu estou bem, mãe. Vou tomar um copo de leite quente e comer um biscoito.
– Assim me sinto melhor, filha. Eu vou me deitar. Não demore, por favor, fique essa noite no meu quarto. O seu pai dorme na sala.
– Mãe, por favor. Não precisa.
Maria não desiste, e insiste que ela se deite em sua cama. Após terminar o lanche, graças ao apetite que parece ter voltado após dias, Luna aceita, mas por estar sem sono, espera sua mãe pegar novamente no sono e se levanta, vai para o seu quarto, tranca a porta, debruça-se na janela, observa o seu girassol e tenta ponderar algo, mas sua mente não consegue criar nada. Sente que está vazia, mas um vazio diferente, sem negatividades, saboroso que, de alguma forma, lhe dá conforto. Após uns dez minutos, seu pai chega, bate a sua porta, pergunta se está tudo bem, ela abre a porta, ele a abraça, ela diz que está tudo bem, que ele pode ir descansar do trabalho. Gilberto se retira, toma um banho e vai deitar.
Luna volta a janela. Tenta entender o porquê está tão tranquila. Deveria estar pensando no irmão desaparecido, no tio pedófilo, na sua vida a seguir. Mas quando tentava conjeturar tais lances, sua mente logo se desviava. Sentia que um apagador estava tirando os pensamentos negativos da sua visão. Talvez estivesse cansada de lutar, de falar, de brigar por seus direitos. E talvez ela só precisasse de um descanso.
Saindo da janela, pegou o seu livro preferido na gaveta de sua mesa de cabeceira e o leu pela milésima vez. O conto infantil que não tem nada de infantil, constatava lendo seu conto favorito.
Enfim o sono estava lhe assolando, queria continuar acordada e vivenciar essa sensação nova, distintamente deleitosa, mas seus olhos já estavam dando sinais que iriam ir-se ao mundo dos sonhos. Antes de apagar de vez, ouviu o seu celular vibrar, olhou rapidamente e viu que era uma mensagem em uma de suas redes sociais. Quis ler, mas antes de tocar no áudio, seus olhos já estavam fechados.

O QUE NOS FALTA ...🔞Where stories live. Discover now