ANSIEDADE EM TEMPOS DE CÓLERA

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Como dormir a noite sabendo que, após quase dois meses, enfim, sairá para ver o sol? Esta foi a auto pergunta que Toni passou o domingo fazendo. Faltavam duas semanas para o Natal e Toni estava feliz por saber que não passaria as festividades trancafiado num quarto branco de hospital. Os dias dificilmente foram solitários. Tendo as regulares visitas de seus pais, ora sua mãe, ora seu pai e, raramente, ambos. Toni, em seu obrigatório descanso, por vezes se viu pedindo ao tempo, a Deus, ao mundo para que seus amados pais reatassem, mas ele, assim como os próprios, sabia que isso estava longe de acontecer. Toni já vira muitas brigas, discussões... Quem sabe, se a magia do Natal não ajuda, e eles não amolecem? Tudo pode acontecer com o pedido de uma criança cheia de esperanças, mas um adolescente, quase adulto, isso fica na imaginação de sonhos que clamamos ao deitarmos na cama, esperando um novo e diferente amanhecer. Muitas pessoas entendem o Natal como uma comemoração familiar, então, porque não agora, com ele e sua família?
Toni, apesar da idade, não queria acreditar nesse tipo de relação a distância. Sempre que estava com a mãe era tudo quase perfeito, e o mesmo era com o pai, mas é claro, isso cada um em sua residência. Toni não achava que isso era vida. Nos dias atuais, casais que envelhecem juntos são tão raros quanto um político admitir que roubou: acontece, mas em seguida, pode-se desaparecer da vista do grande público. Como uma mentirinha infantil.
No quarto, olhando para o teto, entediado, ele já não mais sabia o que pensar sobre a sua e a vida de seus pais. De certo, a segunda opção estava longe de sua alçada.
Dentre as visitas, também teve o ar da graça de seus antigos colegas de escola, em que cursou até a quinta série. Amigos estes, que se dependesse dele, estudariam para sempre: mesma escola, mesmos amigos e ninguém lhe chamando de estranho ou pondo apelidos pejorativos, ao menos, se aconteceu ele não sabia. Nesse interim, Toni era apenas Toni. Sua escola tinha um ensino básico fraco, e muitos professores não davam atenção aos alunos, sempre reclamavam do governo, dos seus salários... com isso, Toni, apesar das notas excelentes, não era considerado nada além de mais um aluno de escola pública. Era ótimo, ele ponderava tentando ver algo na programação televisiva. Nada era interessante o suficiente ao ponto de desviar seus pensamentos.
— Eu era feliz e sabia.
Sim, sabia. Muitos procuram destacarem-se na fama, religiosidade, dinheiro, bom emprego, realização de sonhos fantasiosos... A lista é infinita, mas para Toni, era algo chato e demandava trabalho absurdo. O pouco de destaque que tinha nesta época, lhe proporcionava trabalhos em grupo, que somente ele fazia, momentos de passar cola nas provas, que, caso algum professor prestasse atenção, veria os aviãozinhos de papel voando por todos os cantos da sala. Apesar destes momentos, Toni sempre ia para festas, era muito popular nos recreios, não era zoado nas atividades físicas, pois ninguém dava muita atenção. Os professores resumiam as atividades físicas em futebol: jogavam a bola na quadra da escola e deixavam que se virassem. Não prestava atenção em quem jogava ou não. As notas eram dadas por número de faltas, visto pela lista anunciada no inicio da aula. As alunas pegavam, por elas mesmas, bolas de vôlei e brincavam de queimadas ou vôlei ou qualquer coisa para, apenas, o professor, ver que estavam fazendo atividades.
— Não era uma vida ruim!
Não. Na visão de Toni e dos demais alunos, era uma vida maravilhosa, pois se divertiam como queriam e, grande parte, ia para a escola para fugirem de suas vidas medíocres jogadas ao leu por um sistema falho. Para eles, a educação física era o segundo melhor momento do dia, visto que o primeiro era deliciarem-se com a humilde alimentação do recreio.
Numa certa tarde, já no final de novembro, os alunos se reuniram e foram todos vê-lo. Em comunhão, compraram flores e doces e, para delírio dos médicos e enfermeiros, fizeram uma mini festa dentro do quarto hospitalar.
A festa só não foi melhor, porque um de seus amigos lhe deu feliz dia da Consciência Negra. Haviam se passado cinco dias após esta data. Toni ficou nervoso, lembrou do dia em que quase morreu, e lhes explicou, de uma maneira energética, que o dia da Consciência Negra é um dia para reflexão, e não comemoração. Que é um dia para que todos, brancos, negros, amarelos... lembrassem do que isso significa para um povo que foi escravizado por mais de 300 anos. E não uma comemoração pífia designada pelo governo.
— ... se alguém tivesse consciência, a cerca da vida dos negros, acha que eu estaria preso aqui nessa cama de hospital?
Toni havia mudado. A dois anos atrás, ele não se importara, e até riria da comemoração. Mas o seu pai já havia lhe alertado nos sermões do café da manhã. Mas nada deu mais ênfase nesse novo Toni sábio, se não, a surra que levara do trio de arcanjos. Dos livros que lera no hospital, ele fazia questão de pedir ao pai que levasse alguns sobre tempos escravocratas, histórias de outros negros famosos que foram retratados como brancos, como Machado de Assis, Os Irmãos Rebouças... e para melhorar seu interesse, ainda teve um apoio de uma enfermeira que ele fez amizades. Ela levava alguns livros para ele, e algumas vezes lhe contava histórias africanas.
O desentendimento só não foi para frente, porque, seu amigo, vendo que estava lhe fazendo mau, pediu desculpas e alegou ser apenas uma brincadeira. Toni não estava satisfeito, mas todos estavam ali para vê-lo se recuperar, e não para zombar de sua negritude. Com brincadeiras dos demais, a tensão passara.
Esse foi o maior estresse que se recorda do hospital, mas as noites, a história era outra. A febre que assolou Toni por muitos dias, se deu por conta de seus inúmeros pesadelos, ansiedade, estresses de pânico e, as não menos importantes, dores nas costelas, nariz e etc.
Os pesadelos se tornaram amigos de Toni. O garoto amava as visitas, mas ao vê-los indo embora, vinha a mente os sonhos horrendos que o visitavam. Até o grotesco pesadelo da morte de sua mãe retornara algumas vezes. Neste, algumas vezes ele via a morte de sua mãe, em outros ele apenas ficava sabendo por amigos. Toni adquiriu uma insegurança estranha a cerca do mundo exterior. Seus sonhos eram de perdas, pessoas que morriam, pessoas que o traiam, pessoas que o ofendiam... tudo relacionado a perda, traição, insegurança, dor por estar e se sentir sozinho. E o prolongar dos dias, por conta de sua febre, piorou tudo. A febre demorou para baixar e Toni teve que tomar remédios para a dor física e mental. Os horários do medicamento pareciam infinitos. Toni já estava ficando amigos dos dois enfermeiros que muitas vezes ao dia adentravam o quarto para lhe dar os remédios. Carlos Aberto era o enfermeiro que lhe dava banho e ficava na parte da tarde e noite. Rosa Gomes ficava manhã e tarde. Ambos davam remédios e comida. Dentre os dois, Gomes foi quem mais se aproximou. Seu jeito gentil e carismático de ser era apaixonante. Quando o sol reluzia na janela, Toni já esperava ela vir e brincar com ele:
— Ahaaa... então hoje tem sol para o príncipe? Que bom, vamos para um injeção só para animar!
A enfermeira Gomes, assim como todos que medicaram Toni, adoraram a sua presença como enfermo, não por gostarem dele doente, mas sim, por ele ser muito receptivo e não pestanejar com os remédios, sempre colaborar e estar disposto a melhorar. Foi Gomes que notou que, apesar disso, a maior dor de Toni era interna.
Toni lia as revistas querendo buscar respostas, lia os livros de história pedindo por justiça do porquê ele sofreu as agressões e, ela via a felicidade nos olhos do garoto quando seus pais o visitavam. Os sinais estavam ali, e Gomes procurou conversar com ele para o incentivar a seguir uma vida de cabeça erguida. Nas primeiras conversas, Toni assentia, concordava com tudo, como se estivesse tudo bem. Porém, com o passar dos dias e o desenrolar da conversa, Toni foi se sentindo mais a vontade e disposto a desabafar. Rosa entendeu que ele odiava levar os seus problemas para os pais. Dizia que sempre estava tudo bem, que, se houvesse um problema, ele mesmo resolveria.
— Não faça isso — aconselhava Gomes —, olha o que sua omissão fez com você. Eles são seus pais, não só merecem saber de suas frustrações, como é a missão deles lidar com elas.
— Eu... as vezes tento, mas... Não sei por onde começar.
— Fale. O começo não é necessariamente importante. Os meios podem ser revistos e, quem sabe, o final não ser melhor que uns garotos idiotas?
Toni se sentia feliz por dialogar com a enfermeira Gomes. E graças a ela ele não entrou em depressão, ou auto piedade. Mas ainda não estava preparado para seguir esse conselho. O seu coração queria a união dos pais. A razão dizia que isso era loucura. E ele, se via no meio desse turbilhão.
No último dia, ao ver a felicidade que a enfermeira lhe agraciou, Toni a abraçou e agradeceu os dias que lhe fez companhia. Que, no início, leu para ele, já que não conseguia segurar os livros, ou fazer qualquer outra coisa se não ficar deitado calado.
— Fico muito feliz que está bem e verá o sol além dessa janela de ferro. E para não esquecer de mim, lhe trouxe um presente.
Gomes tirou da bolsa um livro ilustrado escrito "Quilombo das Margaridas".
— Este é um livro que minha mãe lia para mim quando criança. Ele me ajudou a ter orgulho de quem sou/somos. Espero que goste.
— Eu já gosto muito dele.
Havia sinceridade na amizade que surgira entre a enfermeira Gomes e Toni. Uma emoção tomava o jovem livre e a enfermeira amiga.
Seu pai, sabia do presente, mas não entendeu a emoção dos dois, pois Rosa não falara que havia adquirido uma amizade com seu filho. Ângela, no canto da sala, não estava feliz com a cena. Para seu filho, escondeu bem a sua repudia, mas tanto Gomes, quanto Antônio, notaram que ela não engolira esta amizade.
No caloroso abraço de Toni e Gomes, eles trocaram os últimos elogios e afeto.
— Não quero voltar pra cá, mas espero te ver novamente.
— Não irá retornar. Mas me verá em breve.
Após o último trocar de olhares sinceros de amigos que irão para uma longa viagem, Toni e sua família se despediram da luxuosa clínica na Zona Sul do Rio de Janeiro.

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