UM ANÚNCIO ENSURDECEDOR

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Na tevê, uma reportagem interrompe a programação da tarde. Toni e sua mãe viam o clássico filme brasileiro "Proteção". A repórter faz o anuncio dizendo que houve um desaparecimento num bairro da zona norte do Rio de Janeiro.
- O que será agora. Seu pai foi parar no noticiário por matar alguém por ouvir suas piadas sem graça?!
Toni ignora e finge não ouvir o comentário desnecessário de sua mãe, esta que sorri ironicamente olhando para o filho de soslaio esperando sua reação. Toni não tira os olhos da televisão, pega o controle remoto e, discretamente, aumenta o volume. Nesse momento, a repórter está entrevistando uma jovem que, de primeira instância, Toni jura convencê-la.

"Isso é um absurdo. Fez uma semana do desaparecimento do meu irmão. E nada, nadaaa... fomos a polícia e, tenho medo de expor aqui, minha família tem medo de falar, mas eu cansei. Lá, na polícia, eles debocharam da nossa situação. Minha mãe não tem dormido, o meu pai passa horas na rua procurando informações e a polícia debocha. Na delegacia eles perguntaram se meu irmão fumava maconha, cheirava cocaína, era metido com bandidagem... meu irmão tinha acabado de assinar um contrato com um time de futebol internacional. Não é bandido, não é traficante, não é essas coisas horríveis que eles, relaxados em suas cadeiras, disseram. Quando minha mãe mostrou a foto para eles, eles disseram que ele tinha cara de bandido, "cara de bandido". O que é ter cara de bandido, alguém pode me dizer? Eu vou dizer: meu irmão não tinha cara de bandido, ele tinha COR de bandido. Assim ele foi julgado na DP. Ele é mais escuro do que eu, logo, é bandido por não ter a pele mais clara... "

A jovem, indignada, queria continuar falando, mas a repórter, desconcertada, pediu desculpas, licença e tirou o microfone de sua direção. A menina não chorava, mas havia algo em seus olhos que buscavam lágrimas no ódio externado para todo o país.
- Ah, filho não acredita nessa coisa aí não. Essa gente deve estar querendo ibope. Tudo é essa coisa de racismo. Se fosse mesmo trabalhador e certinho, não tinha passado por isso.
- É o quê? Mãe, por favor. Depois do que eu passei, depois de ouvir o que a menina disse. A senhora diz que "essa gente" inventou? Mãe, eu te amo, não quero ter a senhora como uma pessoa negativa na minha vida. Mas o pai está certo. A senhora nem sabe que é preta e renega sua cor.
- Olha menino eu...
- Eu lamento muito por quem a senhora é, de verdade. Pois é a prova viva que o sistema racista funciona. Mesmo eu, seu filho, tendo sofrido por um crime de ódio, ainda sustenta esse discurso de "essa gente". Essa menina eu a vi uma vez, a muito tempo na escola - tentando uma vaga, eu acho. Ela, agora, jovem, está pondo a cara na televisão, se expondo, tendo forças por que seus pais não conseguem mais lutar, e a senhora me vem com isso? Mãe, eu... não aguento mais. Eu ouço muitas piadas, como a que soltou do meu pai a poucos, ouço piadas até sobre mim, mas me calo. Ouvi piada quando terminei com a Carina. Acha que não sei? Ouvi quando disse que ela era "diferente de mim". Ouvi quando disse que ela iria clarear a família. Ouvi quando disse que ela tinha um cabelo bom. Mãe, eu cansei. Eu sou novo, não tenho dinheiro para sustentar uma casa, mas aqui não consigo mais ficar. Me desculpe se te desrespeito com o meu tom de voz, mas se o pai não me quiser em sua casa, eu vou para qualquer canto do mundo.
Após uns minutos de silêncio e ansiosa buscando palavras, Ângela deixa palavras que logo se arrepende, mas não consegue parar. Ela se sente desafiada, sente que está perdendo o controle de seu filho e, como aprendeu com sua mãe, "uma mulher não deve se calar perante um homem, independentemente do assunto retratado".
- Então você está nervosinho porque ela é sua namoradinha?
Toni se levanta do sofá, sorri desacreditado da frase que ouvira. Balança a cabeça, leva sua mão direita na boca, respira fundo e lamenta:
- Mãe. Após tudo que falei, esse é o seu resumo?! - Ângela o olha com uma expressão crua. Parece não se arrepender do que fala e, o pior, não ouvir nada de Toni. - Eu... - Sai. Vai para seu quarto, fecha a porta e, com lagrimas nos olhos faz as malas.
Para piorar, Ângela bate em sua porta, e fecha de vez o caixão do pouco de decência que lhe restava.
- Vai para o seu pai? Não vai durar um dia com ele, eu te dou tudo e é assim que me trata. Ok, tudo bem. Manda um beijo pra ele. Ele te falou? Está com outra. Ele deve levar ela para lá. Ele é um sujo, eu sempre soube. Por isso larguei ele. Toni, Toni... está me ouvindo? Ele deve ter se arrastado para essa menina, como fez comigo, mas eu tomei vergonha na cara. Sabia que ele já se ajoelhou por mim? É um patético. Me implorou para voltar chorando, aos prantos no chuveiro. Que ceninha ridícula para um homem. Você vai voltar quando ver que aqui é um paraíso, um paraíso comparado a vida do traidor do seu pai. Cuidado para ele não te arrastar para o mundo vergonhoso dele. Vai ser lindo: você, a namoradinha e ele. Três casos de desajeitados – ah, àquela enfermeira! Ele te falou, falou? Toni, abre essa porta. Toni...
Não parou por ali. Toni teve dificuldades para falar ao telefone. Gaguejando, tremendo e, em vão, se esforçando para não chorar, ligou para Antônio que, no mesmo instante, mesmo sem muitas explicações, pegou o primeiro taxi que passou e correu para buscar o filho.
Antônio não entrou na casa de sua ex, e talvez, caso tentasse entrar, o rumo da situação seria ainda pior. Se Ângela parou de esbravejar e parafrasear o seu vasto vocabulário de palavras de baixo escalão, nem Toni ou seu pai saberiam dizer. A cada mala levada para fora, era uma frase diferente. Antônio se limitou a ficar no portão e pegar a bagagem do filho. Até o motorista, envergonhado, ajudou pai e filho, e acabou sobrando até para ele a raiva de Ângela.
- Vai ajudar esses aí? Cuidado, um é um fracassado e péssimo pai, o outro é um garoto que desrespeita a mãe por conta de uma mulesinha qualquer. Não valem nada. A dupla perfeita. Ou não, como sou burra. São todos iguais, por isso está ajudando. Homens. Vocês não valem nada. Vai, saiam todos daqui, saiam da minha frente. Nunca precisei de nenhum de vocês...
Toni, já não contendo suas lágrimas, ainda tentou dizer algo, como "sinto muito. Eu te amo. Um dia, quem sabe, um beijo e um abraço". E outras coisas que Ângela não o deixou terminar. Toni se foi, olhou para trás de dentro do carro e deu tempo de ouvir o barulho do portão batendo que, de tão forte, Ângela o quebrou.

O QUE NOS FALTA ...🔞Where stories live. Discover now