SILENCIO DOS INOCENTES

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Quanto tempo pode durar um segundo? Um minuto, uma hora? Muitos acreditam que o tempo é preciso, outros que é tão relativo quanto tudo ao redor, palpável ou não. Se você está feliz, sente que o tempo passa rápido e o quer mais vagaroso possível. Tenta, faz de tudo para o momento render e sua pessoa o aprecie com maior fervor que se pode ter. Mas... e para quem está sofrendo? Um minuto antes do coração parar ao ver o fogo queimar sua pele, ou o coração partido por saber de traição, ou por um ente querido falecido... Quanto tempo dura o tempo para quem está aos prantos por uma dor? Seria igual para quem sorri?
"Enquanto há alguém sorrindo, do outro lado do mundo há alguém chorando."
– A gente pode fazer isso do jeito fácil, ou cadelinha maluca quer uma lâmina na jugular? Sabe, menininha bonita, eu nunca fui médico, não levo jeito. Sou péssimo com objetos cortantes. Acredita que já me cortei com apontador escolar –ah, isso foi ridículo. Mas, mesmo não sabendo nada sobre navalhas, bisturis; um médico uma vez me disse umas coisas. Na época fiquei me borrando de medo. Ele queria isso, e conseguiu por uns minutos, me pôr medo. Ele é um médico bem-sucedido da zona sua. Tem escritório próprio, é de família rica, mas é um viciado em jogos de azar, como seu amado tio. Esse médico jogador me ensinou como cortar veias – claro que ele não achou que eu faria isso um dia, mas para me fazer desistir do jogo de cartas, ele olhou a mesa, olhou sua mão, olhou para mais três jogares além de mim e falou:
" – Sabe, é engraçado! Temos muitas veias pelo corpo que são tão frágeis quanto essas cartas velhas e amassadas."
– Um carinha estranho que estava jogando, magricelo, tão magro que dava pena retrucou:
"– Ei, doutor. Vai jogar ou dar aula de medicina?"
– O médico ignorou totalmente o que ele disse com o olhar, mas em seguida olhou para o seu pescoço, sorriu – um desses sorrisos bizarros que algumas pessoas dão para passar terror –, depois disse:
"– Há uma em seu pescoço que se eu passar o meu bisturi, sabe, esse que levo a todos os lugares e o mantenho no meu bolso – apontou para o seu blusão branco, com dois bolsos –, aqui, bem aqui. Se eu passar cautelosamente, mas rápido, você não vai sentir nada. Após alguns segundos vai jorrar sangue para todos os lados e você vai morrer se perguntando como uma coisa tão pequena faz um estrago tão grande. Quando olhar nos olhos do seu assassino, vai desejar não ter mexido com ele."
– Eu fiquei me perguntando como um carinha tranquilo, sorriso simpático, cabelos grisalhos e uma postura imponente, poderia ir de flor a espinhos tão rápido. Então entendi a charada. Ele não era um assassino ou psicopata, mas foi um momento de estresse, de blefe e aversão da perda que fez a sua cabeça ir para um estado de segurança. Eu demorei anos para chegar a essa conclusão. Mas entendi. Ele estava prestes a perder, e fez um ato desesperado que poderia estragar a sua reputação, no entanto, ele sabia que poderia pôr incertezas, temores e cautela para todos os jogadores da mesa. E funcionou. O magricelo não entendeu direito a cena, mas jogou mais uma carta e inventou uma desculpa que estava com a mão ruim e desistiu. Outro cara, um senhor de sessenta anos, com um olhar cansado, roupas bregas, não desistiu. Ele não expressou nenhuma reação com a história. Apenas continuou o jogo. Eu fiquei apavorado imaginando que se eu ganhasse ele me mataria, passaria o bisturi no meu pescoço e eu nem saberia que foi ele. Então outro cara, um fortão, desses que malham o dia inteiro na academia, um loiro pintado, com olhos pretos e cara feia, mas muito feia, mas se acha o garanhão, gritou que ele era um babaca. Todos pensaram que o loiro iria partir para cima dele, estava com muita agressividade no olhar, mas depois de mais duas jogadas, desistiu e disse que precisava beber mais. Assim que vi que o loiro recuar, estremeci e desisti também. Enfim o jogo terminou. E adivinha quem ganhou? Vai, arrisca. Ah, não quer falar? Tudo bem. Quem ganhou foi o velhinho com olhar cansado. Acredita nisso? Experiência, minha sobrinha, experiência. Hoje sei o que devo fazer para não sentir medo, sei o que fazer para pôr medo. E sei qual é o momento de passar o bisturi. E é quando alguém quer ser mais esperto do que eu. E esqueci de dizer. O velhinho desapareceu duas noites depois. Disseram que ele foi encontrado ensanguentado num beco na Lapa. E o médico, esse ainda tem o seu consultório em Copacabana. Ninguém sabe se foi ele, ou se o velho era só um velho e morreu por um prego qualquer. Afinal, velhos tem diabetes e morrem por causas desconhecidas o tempo todo. Ninguém liga. Mas sabe o que eu realmente aprendi naquela noite, além de agora em diante ser fascinado por olhar veias? Não se brinca com quem tem um objeto cortante.
Luna estava estupefata com a história sinistra do seu tio. Seus olhos estavam recheados de líquido salgado. Mas em sua mente não estava apenas o medo do que poderia acontecer com ela, caso seu tio resolvesse lhe estuprar, resolvesse lhe agredir, resolvesse lhe esquartejar. A sua mente, há meses, era alvo de pensamentos ruins, pensamentos negativos com relação a pessoa que desapareceu com o seu irmão. E se o seu tio abusador fosse a pessoa que pegou o seu irmão? Ela ficaria ali deixando que ele cometesse mais um crime? Sua vida seria o quê? Quem ela seria se permitisse uma coisa atroz dessa magnitude. Luna não era adulta, mas também deixou de ser criança, ou de ter pensamentos tolos por homens, desde que um colega de escola quis, tentou e conseguiu lhe segurar e dar um beijo. Ele quis mais, tentou apalpar suas nádegas, mas ela não deixou. Não falou isso para Joana na viagem, mas de certo, do jeito submisso que Joana é, ela diria que tudo bem "homens são assim mesmo, é tudo brincadeira". No dia que o seu colega abusador tentou se dar bem, ela o chutou suas partes íntimas e correu. Ficou tão apavorada que não contou a ninguém. Seu tio não era um garoto franzino, mas sabia que se não tentasse algo, ele iria além e dificilmente pararia com apenas um dia.
De soslaio, Luna procurou coisas que pudessem ajudar, para jogar, bater... qualquer coisa. Viu o seu abajur, pequeno e frágil demais, não iria nem assustar. Abaixo, estava o relógio do seu irmão. A lembrança do Cleiton veio no átimo. Cleiton era mais forte que ela, mas ela já ganhou uma briga boba que tiveram no passado. Seus pais jamais souberam disso, pois Cleiton ficou envergonhado de dizer que levou um soco na cara de sua irmã e disse que caiu no futebol. Luna não queria se lembrar da cena, mas lembrou de como fez, isso poderia ajudar: com pontapés e chutes desconexos, ela estava levando a pior no sofá da sala. Então, ao escapar para o quarto de seus pais e, inutilmente tentar trancar a porta, segundos antes do irmão entrar sorrindo, ela viu sobre a mesa de cabeceira do pai o seu antigo relógio parado. Um presente que ganhara a muito tempo, mas que nunca jogou fora, não mexia e não retirava da mesa. Luna pegou o relógio, pôs entre os dedos e deu um soco no rosto do irmão. A briga, até então, era mais uma de suas brincadeiras infantis. Ninguém nunca se machucava e logo, logo estavam bem, mas neste dia, Cleiton sangrou. Ela tentou ajudar, ele não aceitou e fez o curativo na bochecha. Não foi um corte profundo, mas o sangue deixou ambos assustados. Após este dia, não houve mais agressões físicas, nem tapinhas nos ombros. Na verdade, nem abraço de irmãos era comum. O dia em que voltaram a se abraçar, foi no aniversário de quinze anos, em que ele lhe parabenizou.
Seria essa uma boa ideia? Seu tio é maior, porém, o relógio estava perto de sua mão, e caso conseguisse, depois era só gritar aos seus pais. Talvez estivessem dopados, sua mãe de remédios e seu pai, estranhamente por bebida alcóolica, mas é melhor arriscar do que se ver sendo molestada por mais um idiota que cruzou a sua vida.
Gilvan não tirava o canivete de sua garganta, mas queria, ao mesmo tempo, tocar o seu corpo. Enquanto sua mão direita segurava o objeto cortante, retirou a esquerda da boca da sobrinha, percorreu seus seios, apalpou, ameaçou beijar, mas ficou receoso de tirar os olhos dela, continuou a descer, tocou seu abdômen, depois desceu até a púbis, desceu mais tocou sua vagina e, na excitação, desviou o olhar abaixando o short da sobrinha com dificuldades. Voltou-se preocupado para Luna, mas ela não expressava nenhuma emoção. Ele achou estranho e pensou que ela estava gostando e continuou abaixando até ver suas partes íntimas. Por uns minutos, roçou sua genitália ereta nas coxas da sobrinha, depois entre suas pernas. Nervoso, tentou introduzir, mas estava em uma posição desconfortável. Convencido que Luna estava esperando o seu toque libidinoso, por estar calada, sem reações negativas, ele amoleceu a mão da faca, introduziu seu dedo molhado na genitália da sobrinha e sorriu.
Luna sentiu a lâmina sem pressão no pescoço. Sabia que tinha segundos para tomar uma decisão precisa e que seria apenas uma chance. Se tudo desse errado, sua vida estaria em perigo. Então quando Gilvan estava ludibriado com a raspada genitália lisa, com um dedo lá dentro e já indo de encontro a ela com a boca, Luna precipitou com mão esquerda. Não era sua mão boa, mas não podia pensar nisso agora. Então conseguiu pegar o relógio, pôs entre os dedos e com ódio, raiva, gana, instinto de sobrevivência, socou o mais forte que pôde a cabeça do tio que caiu em cima da cama. Luna gritou o pai, gritou a mãe, mas a porta fechada e os dois dopados não ouviriam com facilidade. Gilvan se levantou e foi atrás dela enquanto ela tentou ir de encontro a porta.
– Não vai fugir de mim cadelinha. Agora sentirá o bisturi.
Luna não estava mais com o canivete no pescoço, não estava mais sobre a cama e seu corpo estava livre para fazer o que fez com o seu último abusador: deu-lhe um chute no saco. Gilvan caiu em frente a porta, bloqueando ainda mais a saída. Ofegante, buscando fôlego, esbravejou:
– Seus pais estão dopados, sua idiota. Ninguém vai te ajudar. Eu vou...
Sem o deixar terminar, Luna pisou em sobre as mãos que seguravam sua genitália, pisou mais uma vez, Gilvan enfraqueceu e deixou o canivete cair. Luna pegou e, num desespero, abaixado próximo a ele que ameaçou lhe tocar, Luna passou a faca em seu rosto. Gilvan perdeu a noção e urrou como uma caba sendo abatida grosseiramente. Lá fora, Luna ouviu seu pai lhe chamar, tentar abrir a porta bloqueada, sua mãe e seu pai empurraram a porta e conseguiram ver Gilvan caído nu. Luna com o short malvestido, Gilvan sangrando e pedindo ajuda. Não precisa ser um expert para entender o que aconteceu. O surto de adrenalina invadiu Gilberto que em seguida, sem pensar partiu para cima do irmão com socos de estalarem sua face.
Um.
Dois.
Três socos pesados na face do irmão.
Maria, temendo o pior, tirou seu marido de cima do abusador.
– Não faz isso. Se você matar ele é você quem vai para a cadeia.
– Porcos não merecem viver.
– Mas você sim. Já perdi um filho, não vou perder você também. — Um silêncio tocou o quarto — Chega. Vou ligar para a polícia, agora.
Luna não chorava, não se lamentava por ter rasgado a face do tio, não lamentava ver o rosto dele quebrado pelos punhos do pai. Apenas largou o seu corpo sentado na cama, inspirou fundo, soltou o ar, olhou suas mãos tranquilas ensanguentadas. Por um tempo, elas estavam tremendo, mas agora estavam calmas. Depois olhou o quarto, seu pai com um olhar feroz caído próximo ao corpo sujo, cansado de tanto usar a mão sobre a carne impura do seu ex-tio, olhou novamente o relógio do irmão na outra mão e esperou o fim da noite.

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