HISTÓRIAS DE UM MUSEU ESQUECIDO

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O dia estava aprazível demais para terminar cedo. Rosa e Antônio ficaram uns bons minutos sentados no banco da Boulevard Olímpica; trocando beijos delicados e afagos discretos. Por um tempo que não saberiam contar, seus dedos encontravam os do parceiro numa sutileza musical, os permitindo subir para os membros e os arrepiar. Após uma pausa carnal, que se deu por umas crianças que passavam brincando e fazendo bagunça com os pais, Rosa sugeriu irem ao Muhcab - Museu da História e Cultura Afro-Brasileira. Rosa sentiu que, após a intensa conversa sobre ancestralidade, era dever patriótico saber mais e dar mais valor aos seus irmãos do passado.
Chegando lá, entre um parafrasear e outro, Antônio a perguntou sobre sua faculdade, visto que estranhou o seu jeito de falar e se comportar, perante o fato de não ter terminado a graduação. Rosa tem uma aparência jovial de uma mulher de, no máximo, vinte e cinco anos, apesar de já ter confessado para Antônio ter trinta e dois. Por conta desse fato, Antônio indagava-se se ela havia tido algum problema para não ter finalizado antes seus estudos.
— Eu sou o que chamam de "Preta Patrícia"! — Rosa iniciou a explicação com um tom divertido. — Eu tive a oportunidade de iniciar a faculdade assim que finalizei o Ensino Médio. Mas dois fatos me impediram: o primeiro e primordial — caramba, que redundante! É que eu, até os meus dezenove anos não fazia ideia de qual curso seguir. E o segundo motivo que, mais tarde me daria a resposta do curso superior, é que eu fiz uma viajem para a Guiné-Bissau, país de origem do meu pai que é sociólogo, ativista e professor de história — o que foi útil, quando conheceu a minha mãe e resolveu ficar. Claro que foi porque se apaixonou, né!
— Eita, o seu pai me parece um homem muito culto.
— E é, mas não fica intimidado — brincou. — Mas olha que história louca: Minha mãe, sempre morou em Petrópolis, e hoje é diretora de uma escola. Antigamente ela ainda lecionava língua portuguesa. Meu pai veio da Guiné, para uma conferência, somente. Mas parou no RJ, e não Petrópolis. Como ele ai ficar uns três e talvez quatro meses palestrando em faculdades, não teria tempo para visitas, mas... aí o destino entrou em campo. Uma de suas palestras foi adiada indefinidamente, por conta de uma greve dos professores. Então ele e toda a equipe Guineense, resolveram explorar o Estado do Rio. Claro que iniciaram pelas partes famosas como Pão de Açúcar, Cristo Redentor as praias... Mas um dos amigos sugeriu irem para Petrópolis, pois ele havia sabido de um museu importante. Quando pesquisaram, quase desistiram, pois se tratava de um Museu Imperial. E claro, um museu cheio de histórias sangrentas e muito mentirosas sobre a escravatura e os pseudo-salvadores portugueses (que todos já estavam de saco cheio de ouvir). Mas uma das palestrantes sugeriu irem somente para estudos e que também, para tirar o gosto amargo, caso fosse ruim, iriam em uma das cervejarias que há na região. Então, lá se foi o meu futuro pai e seus amigos. E adivinha como meus pais se encontraram? O colégio da minha mãe estava em uma excursão. Minha mãe, na época dava aulas apenas e era professora responsável de um grupo escolar. No decorrer, eles acabaram se esbarrando, graças a um comentário indignado do meu pai como "esses portugueses e suas mentiras históricas ", ou algo assim, não lembro. Minha mãe ouviu e concordou com ele. Então começaram a conversar, eles trocaram telefones e, dias depois, marcaram para se encontrarem. Daí iniciou o romance. Hoje meus pais tentam povoar Petrópolis, que é meio elitista, e minha mãe, assim como um dos nossos ancestrais apagados da história, do... Ei, caramba! me dei conta de uma coisa...
— E o que seria?
— O seu nome. Eu ia falar da inspiração da minha mãe na construção da sua escola. O nome do seu inspirador, era Antonio, como você. Era Antonio Cesarino.
— Nunca ouvi falar dele.
— Sim, mais uma história que a branquitude insiste em apagar. Antônio Cesarino viveu a muitos anos, por volta de... eu acho... de mil sete... não, mil oitocentos e setenta e cinco, isso 1875. Morou em campinas, homem inteligente. Ele e sua esposa arrecadavam dinheiro para libertar escravos. Ele foi liberto ainda criança. Em Campinas, onde morou, fundou uma escola — presta atenção nessa história — fundou uma escola para jovens brancas ricas de campinas. Pode isso?!
— Que fascinante!
— Simmm... Ainda pasmo com essa história.
— Tá, mas e a sua viajem? Faculdade?
— Voltando, rs... Como te disse uma vez, eu falo muito! Meu pai, desde criança, me ensinava a falar a língua nativa da Guiné-Bissau, apesar de falarem também português, ele fez questão de ensinar a mim e a minha mãe a língua nativa kriol. Então lá, eu vi muitas riquezas e uma cultura linda. Se eu contar para um leigo que fui ao continente africano e lá escolhi a medicina como profissão, vão achar que é por conta da pobreza, mas não foi. Na verdade, foi em um hospital, esquecido pelo governo, que me deu um insight. Nem te falo o que vi por lá, mas resumindo, foi por conta de doenças virais. Eu senti que queria e precisava ajudar de alguma forma. A cultura do país é muito rica, mas assim como no Brasil, o governo não valoriza muito. Minha missão, quando terminar os estudos é ficar um tempo por lá ajudando como posso.
— Tá, ok, mas... minha linda que adora dar voltas. Eu ainda não entendi porquê ainda não terminou a faculdade.
— Ah, é isso?
— Simmm...
— Eu já terminei, estou na minha segunda Pós-graduação e no próximo ano farei mestrado. Desculpe, a forma que falei a primeira vez, transpareceu que era só faculdade, não é?
— Finalmente, rs. Fico feliz de ter estudado e ter conhecido uma PRETA PATRICIA — ambos sorriram —, mas e na época do jardim de infância, quando estudamos juntos?
— Sim, sim... não falei, sobre...
— Resume, por favor, adoro te ouvir, mas... Quase não vimos a exposição. Apesar que, acho que te ouvir também é uma aula de história.
— Pois é, pais professores dá nisso! A casa de Petrópolis é quase uma mansão, minha mãe, quando se casou, veio morar por aqui, no Rio, pois tinha mais oportunidades de empregos, para ela, e para meu pai, imigrante. Só fomos morar em Petrópolis, toda a família, quando minha avó faleceu...
— Meus pêsames.
— Ah, não se preocupe. Foi a muito tempo e foi de velhice. Pelo que sei, a minha vó viveu bem. O meu avô faleceu de infarto, dois anos antes. Acho que nenhum dos dois sofreram, quando partiram. Hoje a minha mãe está quase realizando o sonho dela de criar uma escola, meu pai vive palestrando e viajando e eu, vou me tornar doutora.
— Caramba, a sua história é muito bonita, quase um conto de fadas.
— Por isso tive vergonha de falar sobre isso com você. Pois sei o quanto sou privilegiada. Quando soube do que aconteceu com o seu filho e o por quê? Fiquei abaladíssima. Eu nunca passei por essas coisas, pois na escolas que estudei eu sempre fora uma das que tinha melhores condições financeiras e, sabemos bem, o Brasil é a terra da hipocrisia: Há racismo, mas se for rico tudo bem, pode passar.
— Nunca diga isso que acabou de dizer. Você não tem que se envergonhar dos seus méritos, ou dos méritos dos seus pais e avôs. Todos lutamos muito para que um dia, haja mais rosas por aí. E não somente histórias tristes como a da minha família. Eu consegui mudar um pouco a minha vida, o meu filho já vive melhor, quem sabe os filhos dele, possam ser... — Vira-se para Rosa e cutuca irreverentemente sua barriga — uns PRETINHOS PATRÍCIOS.
Depois de mais sorrisos e brincadeiras, viram toda a exposição. Antônio sugeriu que aproveitassem o final de tarde, mas Rosa disse que precisava voltar para ver sua mãe.
— Mas antes de ir, gostaria de te falar de um conto que ouvi quando criança. Ou melhor, amanhã, na saída do hospital do seu filho, levo ele. É muito bonito e eu adorava quando minha mãe o lia para mim. Quando criança, eu gostava pelas ilustrações, mas com o tempo, a cada contar eu me apaixonava por cada palavra e cada sentido ia se tornando mais forte dentro de mim. E por conta dele eu amo a cor amarela e amo meu povo e quem sou. Mas resumindo, como você gosta, ele fala da união do nosso povo de uma forma linda, mágica e real.
Antônio agradeceu a sugestão e disse que esperaria ansioso. Então despediram-se com um caloroso beijo, antes de ela entrar em um táxi na Rodoviária.

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