TÃO GRANDE, QUANTO RODA GIGANTE

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Um passeio de carro nunca fora tão demorado, ao menos, para Rosa e Antônio. Dentro do carro parado às pressas por Rosa, um ribombar cardíaco invadia os ouvidos da dupla encabulada. Seus corações palpitavam em ritmo carnavalesco regido por bateria inicial na apoteose do Rio de Janeiro. A música enérgica cantada clamava por calmaria, ou quiçá uma saída dos corpos ouriçados por desejos oprimidos. Após descerem na Zona Portuária para caminharem até a roda gigante, o clima cálido ainda reinava. Para quebrar o gelo, Antônio lembrou-se de histórias que, a anos atrás, leu nos livros da faculdade de história, que abandonou para cursar belas artes, entretanto, nunca exerceu nenhuma das profissões.
- Sabe... no Brasil há histórias horrendas sobre épocas ignorantes. Mas, se bem me lembro, essa parte é de longe uma das piores.
Antônio fez uma pausa, observou se estava sendo ouvido, pois Rosa andava ao seu lado olhando para frente, com uma expressão vazia e pensativa. Ele retornou o seu conto, quando ela expressou um carismático mexer de boca, fazendo um bico com os lábios e externando o som "huuummmm...".
- A Zona Portuária tem muitas histórias esquecidas em papéis amarronzados. Como prostituição... Ah, meu povo sofreu muito...
- Nosso povo!
- De certo! E principalmente as mulheres escravizadas. Obrigadas, além da serventia absurda e maléfica da escravidão em si, eram também postas à mercê da venda de sua integridade como mulher.
- Me pergunto o que mudou. Uma mulher não tem muito respeito social. E mulher "preta" é menos que isso.
- Sim, sim... Uma coisa que uma colega de faculdade me falou, e disse que as mulheres negras precisavam lembrar, é que o dia Internacional da Mulher não é para vocês, pois as mulheres pretas ainda eram escravas nesta época. Logo, a luta continua a cada dia. Onde o feminismo é da mulher branca, e há o feminismo da mulher preta, que é diferente do que foi lutado e conseguido com sangue.
- No próximo ano serei médica. Meu estágio está chegando ao fim, estarei formada e farei mestrado em seguir. Quero ser uma boa cirurgiã. Quero abrir o meu consultório, ter esse poder de andar com as minhas próprias pernas. Mas me pergunto, mesmo sendo uma pessoa otimista: o que terei que enfrentar, e como meus antigos colegas, alguns, antes, quase meus patrões, como irão me tratar? Afinal, eles são homens, a maioria branco, na verdade, no hospital que seu filho está, todos os médicos são brancos. Os negros que ver, como eu, ou são enfermeiros ou fazem serviços gerais. Como será que eles se comportarão com uma mulher preta no poder?
- A barra é sempre grande, dolorosa e cheia de espinhos... - vira-se para Rosa - como uma rosa!
- Você e esse senso de humor, que me pergunto como e de onde surge!? Mesmo em conversas sérias.
Após o retorno do humor de Antônio e o carisma da Rosa, a conversa se estendeu por todo o Boulevard Olímpico.
- Eu... não sei se devo perguntar. Se eu for grosseira e indiscreta, por favor não responda. Mas fiquei curiosa sobre como você cresceu. Pelo que relatou, a sua tragédia foi quando ainda era uma criança.
- Essa é uma história estranha que, parte dela, só entendi adulto. Eu não tenho parentes por perto, até então, pelo que eu saiba, não tenho nenhum! Mas a policia descobriu uma família que morava no interior do Rio de Janeiro. Essa busca, só foi feita, porque não havia dinheiro para enterrarem minha família. E disseram que os meus pais não tinham plano funerário. - Entenda, muitas coisas que vou te falar agora, eu não lembrava, você destravou isso. Pois fazia parte da dor da perda. Então nessa busca por parentes que pudessem pagar o enterro, foi encontrado esses parentes distantes. Antes que o pedido formal fosse feito, foi encontrado uma conta conjunta dos meus pais. No acidente não acharam nada de cartões, porque eles nunca saiam com ele, e a documentação, racionalmente, não perambulavam em suas carteiras. Essa parte eu fiquei sabendo de forma desdenhosa por esses parentes. Disseram que a polícia lhes disse que acharam documentos que comprovavam que iriam comprar uma casa, e já estavam revendo a documentação de compra e venda.
Bom, eu não sei quanto tinha em conta e se tudo foi usado para o enterro, ou se, estes meus parentes, usufruíram do que sobrou. Tudo que tenho em mente são sensações ruins e palavras maldosas que jogavam na minha cara como cuspida de nojo.
- Mas... por que faziam isso? Te culpavam pelo dinheiro ou pela morte da família?
- Culpa - Antônio para, respira fundo, observa o máximo de coisas que seus olhos podem alcançar e volta a dizer -. Tá aí. Essa é a palavra chave que travou minha língua. Eu era o culpado: por ter perdido os meus pais, por ter sido obrigado a ir morar com eles, por não ter morrido, por não ter dado-lhes mais dinheiro, por ser uma criança triste e, como eles diziam: ser o negrinho deprimente. Eu era culpado por ter nascido negro.
- Então, eles...
- Sim, era uma família branca. Tão brancos, quanto leite.
Parado, Antônio compenetrou a visão em um casarão do seu lado esquerdo. Rosa, ao seu lado buscando no coração palavras confortáveis, nada encontrava para parear com o que ouvira, então fez a primeira coisa que julgou ser correta: Pegou na mão do Antônio, olhou em seus olhos, sorriu e sugeriu que sentassem em um dos vários bancos que passaram no decorrer da Boulevard.
Já sentados, Antônio, ainda fitando o casarão, voltou a desabafar.
- Olhando esse casarão, me pergunto sobre minha mãe. Eu não lembro se algum dia ela me falou dessa irmã branca como neve, mas, aqui, onde a história do Brasil foi escrita com caneta de pena com tinta vermelha. Aqui, onde já a escravidão era mantida por lei, onde a prostituição e estupro foi escondida por anos nessa massa cinzenta que pisamos... Eu... Dou razão a minha mãe. Por ter querido eliminar essa família de sua vida.
Eu disse que me pergunto sobre o por quê? Não. Eu sei. Sabemos muito bem o porquê uma filha negra foge da história dos pais brancos. A miscigenação é um estupro coletivo. E a forma que eu era tratado por "eles", mostrava com detalhes a repudia deste ato ignóbil: o corpo preto nada mais é, que um objeto. Uma coisa para ser usada pelos senhores que jamais se esquecem do chicote e das correntes, do poder de ter em posse outro ser humano.
Rosa passou a fitar o casarão. Com a pausa de Antônio, ela o olhou, observou o seu olhar pensativo e enfurnado num passado duro.
- Então é daí que vem o seu bom humor.
- Como?
- Eu notei que, apesar de certos assuntos serem de origem séria, você tenta espremer doses de sorriso. De certo modo, é típico! Você transforma a sua dor pelo prisma do humor, para amenizar o passado amargo. Isso é uma coisa boa. É uma característica das pessoas que tentam sempre evoluir. Deixando de lado a impressão azeda que lhe aflige.
- Caramba! Que faculdade está fazendo mesmo?
- Viu?
Sentindo a brisa gelada do entardecer, Rosa entendeu que a vontade externada pelo telefone estava se transformando em algo diferente. Não era apenas um reencontro de amigos de infância. Não era apenas gratidão médica. Não era apenas uma culpa por deixar Antônio sem notícias, por conta de seus compromissos pessoais. O afeto pelo divertido Toninho, se transformou em um sentimento maior, pois agora, ela estava atraída por Antônio, um homem adulto que é inteligente e bem humorado.
- Você reparou numa coisa?
- O quê, exatamente?
- Estamos próximos da Roda Gigante.
- Eu não quero ir. - Rosa chega mais perto de Antônio, ficam em uma recíproca ocular. - Há algo tão grande quanto ela, na frente dos meus olhos.
Novamente o carnaval em seus peitos se iniciou, mas agora, a sensação era mais pura e controlada. A ansiedade foi dando lugar a um êxtase, o êxtase dando lugar a troca do respirar, o respirar dando lugar as mãos em suas faces, as mãos indicaram o caminho para os lábios e, estes sedentos, colaram-se como um eclipse.

O QUE NOS FALTA ...🔞Where stories live. Discover now