CONCLUSÕES DO ONTEM, PERGUNTAS DO HOJE

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A virada de ano não foi tão divina quanto a família Santos achava que seria após as festividades. O estranho assédio inexplicável que Luna sofreu ficou no passado, não apenas por conta do desaparecimento do seu irmão, mas também pela lógica dos acontecimentos recentes. Com todas as janelas com grades, não haviam o que temer – pensavam antecipadamente, mas sem muita segurança mental. E com Cleiton desaparecido a um mês, chegaram na conclusão que, na verdade, Luna havia sido abusada pelo captor do seu irmão que, por não o encontra-lo em casa, se contentou com Luna. Talvez, pensava Gilberto, este individuo queira fazer mal ao meu filho por inveja, já que ele estava prestes a se tornar o jovem mais rico do bairro. Poderia ser alguém do time em que ele jogava. Este encomendou o seu rapto, por não conseguir suportar sua vitória. O que um pai poderia pensar? Não havia pistas do desaparecimento do filho, a tal pessoa que invadira sua residência não deixou rastros e tudo indicava que não retornaria para o local do crime. Toda a inclinação do caso do seu único filho homem dizia que o marginal era o mesmo que quisera tocar sua filha, então o que pensar mais sobre este caso?
Já Maria não gozava do mesmo pensamento do marido. Ela não conseguia tirar da mente que, mesmo sendo a mesma pessoa: o abusador e o sequestrador, ela não eliminava a hipótese de ser alguém conhecido. Talvez um primo, um irmão, um tio... ou um amigo dos seus filhos que, em algum momento, adentrou sua residência e descobriu a tal janela exposta. E ser era a mesma pessoa, porquê não pegou Luna como refém, ou algo assim? Seria mesmo somente por conta de um contrato "futuro" com um time internacional? Cleiton não tinha nada, é de uma família humilde, com a mãe empregada doméstica e o pai gari, o que eles poderiam oferecer? Se não há o que oferecerem, então a morte do jovem era a consequência óbvia. Inveja? A palavra mais pensada nos últimos dias por ela e Gilberto, mas essa inveja tola sobre um menino pobre teria causado o seu desaparecimento, ou a sua morte?
Os dias passavam, as perguntas aumentavam, as respostas definhavam nas esquinas podres dos bairros pobres esquecidos pelo governo. O descaso da polícia com o caso já tinha feito Maria e Gilberto perderem a força que tinham em seus corpos. Luna, por muitas vezes, ia com sua mãe ou o pai, ou os dois na delegacia para saber de notícias e as respostas eram sempre a mesmas:
– Estamos fazendo o nosso melhor, senhor. – Dizia o delgado encarregado.
– Mas o que quer dizer fazer o melhor, o meu filho está desaparecido a quase um mês e nada, nenhuma notícia.
– Nosso trabalho está sendo realizado com cautela, senhora. Em breve lhes daremos novas.
– Os senhores não estão fazendo nada. Só nos deram notícias quando falei na tv. Não queriam nem nos receber. Agora diz que estão "fazendo o melhor?" Não acredito nisso. O meu irmão tinha um futuro pela frente e...
– Sua filha é muito abusada, senhora – fala, mas não olha para Luna. – Se ela fosse um pouco mais velha eu a deteria por desacato. Por favor, se retirem do meu departamento. Tenho que... – olhando para Luna – procurar alguns meliantes.
– O meu irmão...
– Luna, por favor. Vamos embora.
– Mas mãe, ele está debochando de nós...
– E o que sua raiva vai adiantar? Minha filha, olhe para nós. O que podemos fazer, se não falar e lamentar?
– Isso não é justo. Eu quero fazer...
– Não filha, não é. E verá que isso é só o começo da vida adulta.
Esbravejando, Luna aceitou as falas de sua mãe e se retiraram. De esguelha, olhou para trás e viu o delegado soltar um sorriso seguido do balançar da mão esquerda em um, nada simpático, "até logo".
Após mais duas semanas indo a delegacia, Luna foi proibida de entrar. Ia com o pai ou a mãe e tinha que esperar na porta para ouvir a ensaiada frase: estamos fazendo o nosso melhor. O melhor não era o bastante. Luna observava sua mãe ficando mais triste e distante, o seu pai ficando mais calado e distante, ambos fechados em seus respectivos trabalhos para esquecerem a dor que sentiam. Luna tomou a decisão de fazer alguma coisa. Estava cansada dessa dor sem respostas ou significados.
A primeira iniciativa foi perguntar na escola se alguém o tinha visto, mas ninguém sabia. Depois na escolinha de futebol e também nenhuma resposta plausível. Hoje, a essa hora, ele estaria treinando em outro país. Pensava sentada na arquibancada olhando os demais jogadores treinando. Distraída, não viu o seu vizinho e amigo do seu irmão sentar ao seu lado.
– Luna? Eu... – pensou em dizer "eu sinto muito por seu irmão. Ele era meu amigo e o queria bem". Mas pensou direito e não se sentia que era o momento, seria melhor perguntar sobre ela. – Também veio... É... Você está bem?
Curta e grossa, responde olhando cada jogador de cima a baixo – Não.
– Me desculpe, eu... Quer falar com alguém em especial?
– Todos em potencial. – Se vira para ele. Ela o conhece, também era amigo do seu irmão. – E você, o viu quando?
– O quê? Quem? Está falando do seu irmão?
– E quem mais seria? Estou aqui para isso, quero saber quem o viu pela primeira vez. To cansada de ficar sentada calada. Estudando para sabe lá o quê. Quero fazer alguma coisa. Alguma coisa que a policia não está fazendo. Alguma que a mídia já esqueceu que um dia fez. Então me fale, onde o viu pela última vez?
– Entendo. – Pensa na forma grosseira e ríspida da vizinha, uma Luna que ele não via, não conhecia e nem sabia que existia; mas tenta ser empático. – Por incrível que pareça, aqui foi a última vez que nos falamos.
– E quando foi isso? Vai, fala – forçando simpatia –. Por favor. Tô cansada de perguntar as pessoas, ligar para as pessoas... e todos dizem que não o viram, não sabem de nada. Mesmo aqueles que eu sei que o viram dias antes do desaparecimento, negam.
– Com toda certeza estão com medo de se envolverem.
– Medo de se envolverem? Cara, o meu irmão sumiu, desapareceu. Ele era popular, tinha vários amigos, colegas... Onde eles estão agora para ajudar? Cadê as amizades? Essas... – olha para o campo de futebol. Um jogador acabara de fazer um gol, comemora com os amigos, grita e o pouco de torcida bate palmas e grita o condecorando. – Pessoas felizes em seus mundos falsos. Estou cansada. Hoje estão batendo palmas felizes para alguém. Amanhã esquecem de tudo isso o tratam como um nada, "um nada". Para que isso, que porcaria de vida é essa?
Luna tem lágrimas nas pálpebras, mas o ódio nos olhos não permite que caíam. Seu vizinho nota seu olhar repulsivo para as pessoas, é compreensível, ele diz de si para si enquanto lembra da última conversa com Cleiton. O dia em que descobriu um novo amigo. Um que, mesmo admitindo ter tido preconceito por ele, em algum momento, tentou se retratar, ser outra pessoa, ser melhor que o mundo o cercava.
– Luna – Luna o fita, seus olhos estão marejados e, enfim, retorna a ternura de outrora. – Não vou dizer que entendo a sua dor, pois estarei mentindo. Mas você sabe, eu tenho muitos irmãos, não suportaria perde-los. Eu não sei no que posso ajudar, se é que posso ajudar! Mas estou aqui, de verdade. A minha amizade era com ele, mas somos vizinhos e nada impede que sejamos amigas também – a frase "sejamos amigas" fez com Luna franzisse o cenho.
– Obrigada – uma lágrima solitária escapa, Luna tenta agarra-la com um dedo, mas seu parceiro de conversa não deixa e segura suas mãos.
– Chorar não é fraqueza. Eu.. confesso. Chorei muito anteontem. Seu irmão foi, nesse último dia de conversa, aqui, nessa arquibancada, mais meu amigo que foi em toda a vida. Eu chorei por ele e por mim. Eu não tentei uma amizade antes, deixei que nos afastássemos. E foi ele que, além de me convidar para sua festa – festa, perguntou-se Luna –, conversou comigo sobre o passado, sobre o futuro e sobre seus sonhos. Eu chorei porque eu tive um grande amigo do lado da minha casa e não aproveitei. Chorei porque ele foi sincero. Chorei porque ele sumiu. Chorei porque ele não está aqui. Chorei porque eu precisava chorar e deixar que meu corpo se lavasse desse mundo que, como você disse, esquecem rapidamente dos outros.
– Obrigada – as lágrimas caem involuntariamente, quentes, e ao mesmo tempo com a frieza de uma menina que necessita ser forte por sua família. – Ele não disse nada antes de su... de sair? Onde ia? Ou algo assim?
– Olha, eu o vi uns dias antes do desaparecimento. E... calma, tem... a última coisa que lembro é que ele ia para casa arrumar as coisas e...
– E arrumou tudinho. O seu quarto está com as malas que ele arrumou. Não faz sentido, não faz sentido. Onde ele iria. Já estava tudo pronto. Wanderson, por favor. Onde ele iria?
– Não sei onde ele foi, mas sei onde ele "ia" na semana seguinte. Mas não acho que ele chegou a ir lá e...
– Onde, me diz?
– Bom. Conversamos muito neste dia. Eu o aconselhei a não deixar ninguém o esperando aqui, para não deixar pontas soltas com ninguém. Então disse para resolver as coisas com a Carla.
– Carla? Ele ainda estava saindo com ela? Minha mãe odeia essa garota.
– É... ele sabia disso e ela também. Por isso ele ia viajar sem falar com ela. Mas falamos sobre como seria injusto fazer isso com alguém que gostava dele.
– Então ele foi para a casa dela?
– Não sei. Porque ele disse que ia só na próxima semana. Mas, pelo que sei, ele estava mesmo decidido a resolver isso com ela. Talvez tenha ido antecipar a conversa. Na verdade, ele conversou com ela. Sim, conversou na pizzaria, eu acho! Mas ia para buscar algumas coisas que deixou na sua casa. Mas como te falei. Isso era para a próxima semana, talvez um ou dois dias antes da viagem.
– Wanderson. Ele não voltou para casa. E ele ia na casa dessa garota que a minha mãe odeia.
– Pode ser coincidência. Ela não...
– Você a conhece bem para salvar ela de suspeita?
A pergunta fez Wanderson lembrar da praia. O dia em que viu a menina deduziu que era homofóbica e, sem dúvidas racista. Apesar de Cleiton ter o tom de pele escuro, estava longe de ser considerado negro, assim como ele, retinto. Não conseguia imaginar ela fazendo algo como desaparecer com o amigo, mas ela é uma menina ciumenta possessiva. Uma pessoa desse tipo é capaz de qualquer coisa.
– Não poria a mão no fogo por uma pessoa que não conheço. E te confesso: não gosto dela. Acho que sumir com o Cleiton uma coisa muita pesada para se pensar, mas... talvez ela saiba do último local que ele foi. Você vai ligar para ela?
– Não. Vou a casa dessa "garota". Conhece alguém que saiba onde ela mora?
– Ela costuma ficar na casa da tia, lá no bairro. Mas... pensando bem. Ultimamente não tenho visto ela por lá.
– Suspeito?
– Muito. Vamos esperar o jogo terminar. A namorada do André sabe onde fica a casa dela. Podemos perguntar ele, sobre ela.
O irmão do Gilberto pede para passar uns dias em sua casa, alegando ajudar a família, mas na verdade a sua ideia é poder abusar da sua sobrinha.

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